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Descobrimos Sara Tavares há trinta anos, ainda adolescente, através de um dos concursos de talentos que, nas décadas seguintes, revelariam vários nomes que hoje conhecemos e admiramos.
Portuguesa de origem cabo-verdiana, manteve sempre forte ligação aos seus pares, em diversas colaborações e homenagens, e grande proximidade à música e aos músicos africanos", é assim que começa a nota de condolências do Presidente da República em relação à morte da cantora.
Ao mesmo tempo que a notícia da morte da artista chocou o país também o apanhou de surpresa.
Sara Tavares tinha apenas 45 anos e ninguém quis acreditar que a doença a levasse tão cedo. Além disso, não se tinha noção da gravidade do
tumor cerebral que lhe foi diagnosticado como "benigno" há 10 anos e contra o qual lutava há, portanto, uma década. Ainda assim não parou, nem mesmo quando deixou de poder tocar e cantar. Ainda no
passado mês de fevereiro lançou o seu último single.
Em setembro passado, o escritor Luís Osório dedicou um dos seus 'Postal do dia' a Sara Tavares. E sobre ela escreveu: "P
ortugal é um país pequenino. Acabamos todos por nos conhecer e até nos convencemos que almoçámos ou falámos com quem jamais se cruzou connosco. Nunca me cruzei com a mulher de quem te quero falar. Nunca estive na mesma sala, nunca a vi sem ser num espetáculo no Teatro São Luiz, ao longe.
Mas admiro-a no que dela acredito conhecer".
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Aposto que é uma mulher forte e teimosa que gosta de escolher o seu caminho, que prefere errar sendo ela do que acertar sem que o resultado venha de si, das suas urgências, dos seus medos, da sua profunda inquietação, da sua raiva também. Talvez seja a melhor voz da música portuguesa. Pelo menos
a voz mais inteligente, a que se foi adaptando ao que vida quis que fosse.
Falo-te de Sara Tavares. A Sara a quem a vida deu e tirou. A quem a vida desafiou como se tudo isto fosse um jogo, como se o seu destino já estivesse desenhado numa qualquer roleta russa. Deu-lhe tudo, retirou-lhe tudo. E que
perversa tem sido a vida para a Sara. Sempre quente e fria. Sempre a oferecer-lhe sonho, mas a acordá-la com pesadelos. Sempre a dar-lhe ilusões, mas a carregá-la de medo, de dúvida, de cansaço."
Continuou Luís Osório: "A Sara que apaixonou o país quando cantou no concurso Chuva de Estrelas. Lembras-te? Tinha 16 anos quando apanhou o barco de Cacilhas para o Terreiro do Paço e depois o autocarro para os estúdios. Cantou Whitney Houston e tudo lhe pareceu ser possível.
Crescera sem os pais - a Dona Eugénia, branca, foi a avó que a mimou. Uma avó emprestada no Pragal, lugar onde era feliz quando corria ou mergulhava ou ia à pesca com canas feitas de espigas. Feliz enquanto jogava à bola como os rapazes. Mas havia qualquer coisa. Um ruído interior,
uma tristeza que se tornou matéria viva. A ausência dos pais, a ausência de carinho, de colo, uma espécie de solidão que não dependia da quantidade de amigos e da rede de amor de Dona Eugénia".
Neste 'Postal do Dia', escrito um pouco mais de dois antes da partida da artista, lê-se também: "A Sara transformou-se numa estrela. Ganhou o Festival da Canção,
mas não queria ser uma estrela a cantar o que não lhe dizia nada. Por isso, foi à procura. Compôs, convidou produtores e músicos de que gostava, fez álbuns marcantes e amados pela crítica. E
teve de parar por causa de um tumor no cérebro. Um tumor benigno que resolveu com uma operação. Retomou e parou. Voltou a retomar e voltou a parar. E agora, em 2022,
uma recidiva. Problemas na voz, impossibilidade de tocar guitarra, problemas e mais problemas, adaptações mais adaptações. Mas continua. Deixou a sua equipa, quis ficar sozinha. Mas continua viva.
Desperta para as injustiças, para o racismo, para a hipocrisia mascarada de oportunidade."
"Continua a viver no Pragal, o lugar com vista para Cacilhas e o Cristo-Rei.
É uma mulher do caraças. Uma mulher poderosa. Com um talento extraordinário e uma relação com a vida que talvez Deus ou um querubim um dia lhe possa explicar. Porquê sempre isto? Este dá e tira, este carrossel que é comboio fantasma, esta luz que se torna sombra? A Sara Tavares é bem capaz de fazer estas perguntas, mas por favor não tenhas pena dela. Porque ela é grande e precisa de tudo menos disso, p
recisa de ser ouvida, que a oiçamos sem mais nada. Ouve Mana Fé e não tenhas pena. Só reconhecimento de que a vida é uma carta fechada para todos, incompreensível bastas vezes, absoluta", terminou Luís Osório.