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The Mag - entrevista

No adeus aos palcos, Simone recorda loucuras e amores de uma vida e confessa-se: "Continuo a ser muito impetuosa. Digo as coisas, e depois arrependo-me"

A dias do adeus derradeiro às luzes - acontece a 29 de março, no Coliseu dos Recreios -, conversámos com Simone de Oliveira, que aos 84 anos conquistou o estatuto de ícone nacional e de ser chamada apenas por Simone. Quisemos saber quantas 'Simones' cabem dentro dela. Qual o legado que deixa às mulheres portuguesas. E ela ainda nos confessou amores e boatos de amores e pecados seus e de família. As confissões que faltavam.
João Bénard Garcia
João Bénard Garcia
24 de março de 2022 às 23:40
Simone: as imagens de uma vida gloriosa
Simone de Oliveira
Com o seu eterno amor, Varela Silva
Simone no festival, com Madalena Iglesisas
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira no teatro com Carlos Miguel, o Fininho
No teatro ABC com Toni de Matos
No festival da canção
Com Carlos do Carmo
Simone no festival, com Madalena Iglesisas
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira
Simone de Oliveira

Aos 84 anos e com 65 de carreira, sem papas na língua e com "uma saudade lavada" - jura que "sem lágrimas, nem choradeiras" -, Simone, a mulher que em 1969, em plena ditadura, foi a única de quatro a aceitar cantar no 'Festival da Canção' um poema de José Carlos Ary dos Santos onde se dizia: "Quem faz um filho, fá-lo por gosto", confessa-se à The Mag: os amantes, os boatos de amantes, como afugenta os homens que não lhe interessam. Assume que é "doida" mas "não tolinha", conta como ainda hoje se espanta por beber uns copos, conduzir e nunca ter sido apanhada. Revela um "segredo de família", fala de amor e respeito e explica porque chorou pela morte recente do pai dos filhos, Maria Eduarda e António Pedro... Um lavar de alma, sem filtros, para ler na íntegra: a dias de deixar, definitivamente, de cantar.

1. OS HOMENS

Foram-lhe atribuídos muitos romances. O que era preciso um homem fazer para a conquistar?
Ó pá, gosto de voz, das mãos, dos olhos. Não gosto de homens loiros. Deve haver uns loiros lindos, não digo que não. Eh pá, mas gosto de homens morenos, altos, apessoados. Que cheirem bem, limpinhos e sejam educados. Os homens pequenos também devem ter o seu charme, mas não me levem a mal.

Então nunca namorou um baixinho?
Não (gargalhadas), não. Não tive assim tantos namorados quanto me pintam.

Para si o contacto visual era importante.
Sim, a voz, as mãos. O ser educado é fundamental. De ordinarices não gosto. Os "fasquiados", como lhes chamo: 'Ai sou muito bom!'. 'Ai sou o melhor!'. Não tenho paciência.

"Gosto de homens morenos, altos, apessoados. Que cheirem bem, limpinhos e sejam educados. Gosto de voz, das mãos, dos olhos..."

Mas eles apareciam?
Não. Os homens tinham medo de mim (risos). Tenho um truque para os afastar, fazendo um ar de antipática, que é olhar-lhes durante cinco minutos só para os sapatos.

Só para os sapatos? Conte lá como funciona.
Aprendam minhas senhoras. Se querem afastar um homem inconveniente usem este truque: Olhem cinco minutos fixamente para os sapatos deles. Às tantas eles já não sabem onde por os pés. Começam a duvidar se os sapatos estão limpos. Com um simples olhar digo-lhes: 'É pá, cala-te! Põe-te quieto!'.

A Simone foi alvo dos maiores boatos que circularam na sociedade portuguesa nos anos 60 e 70 do século passado.
Fui. Olha, o Eusébio.

...
Eusébio Foto: arquivo

Também?
Sim, vi o Eusébio duas vezes na minha vida. Quando era jornalista e me pediram para o ir entrevistar, já por causa desses boatos. E depois estava a jantar com a Fátima Bernardo (assessora pessoal e amiga) numa churrasqueira ao pé do Benfica e ela disse-me: 'Olha, está ali o Eusébio', já ele estava muito mal. E ele levantou-se para me vir cumprimentar. Foram as duas únicas vezes na vida que vi o Eusébio.

E bastou para lhe lançarem o boato.
Pois. E que eu tinha uma casa que ele me tinha dado. E que tinha partido a casa toda com o meu mau génio. Meus Deus, as coisas que se disseram de mim.

Que outras coisas se disseram de si que não eram verdade?
Olhe, lembro-me de um episódio que foi caricato, que envolveu o Dom António Ribeiro, na altura padre, mais tarde Cardeal Patriarca de Lisboa. Era uma pessoa de quem gostava muito porque ele foi padre da RTP (onde teve os programas 'Encruzilhadas da Vida' e 'Dia do Senhor'). A RTP fez um cruzeiro, nessa altura eu vivia com o Henrique Mendes e sentei-me à mesa com o Henrique e estava o Baptista Rosa, que era o diretor de uma revista, que também se sentou. Havia um lugar vago na nossa mesa e o padre António Ribeiro sentou-se nele, mesmo à minha frente. Parou tudo.

Ui, imagino.
E antes de ele se sentar perguntei-lhe: 'Sabe onde se está a sentar?' E ele disse: 'Sei, e é aqui que me quero sentar'. Telegrama para a televisão: 'Ele era meu amante'. O Soares Louro, que foi depois meu padrinho de casamento, chama-me à RTP e diz-me: 'Tu olha para mim, diz-me? Diz-me a verdade'. E eu respondi: 'Eu?!'. As coisas que se disseram a meu respeito foram inimagináveis. Engraçado, as coisas que foram verdade nunca ninguém disse. Tudo o que era mentira circulava. Esse foi um dos dramas da minha vida.

2. AS VÁRIAS "SIMONES" 

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Simone de Oliveira

É curioso porque quando se lê sobre a história da sua vida percebe-se que não há apenas uma Simone, mas várias mulheres diferentes. Consegue contabilizar quantas 'Simones' se somam na sua vida?
Várias: A mãe, a avó, a tia. A doida, a que não é doida.

Uma mulher com vários ciclos diferentes de vida, é isso?
Sim, vários. As minhas décadas foram todas diferentes.

Quando é que teve consciência disso?
Acho que tive sempre. Acho que tolinha não sou. Posso ter feito asneiras, que as fiz, como todos nós. Mas acho que tolinha nunca fui.

Que asneiras? De que tipo?
Talvez atitudes que podia ter evitado se tivesse tido mais discernimento ou calma. Já sou menos, mas continuo a ser uma pessoa muito impetuosa. Digo, e depois penso: 'Caramba, não devia ter dito isto e já disse'. Hoje estou mais calma e sou capaz de calar algumas coisas. Só para não levantar atritos. Eu não sou de guerras. Tenho uma saudade lavada.


Como aquela saudade que vai sentir quando cair o pano sobre o seu último concerto, no dia 29 de março, no Coliseu dos Recreios de Lisboa?
Exato. Sou muito feliz por este espetáculo. Vou continuar a viver bem. E acabam-se as cantigas.

Já disse que quer acabar com uma "boa nuvem" e um "bom perfume".
Exatamente. Olhe, comprem os discos e vejam-me na RTP Memória.

3. OS PALCOS

Este vai ser o seu último concerto. Lembra-se do primeiro a solo?
Ó querido, o primeiro não me lembro, mas em 1968, 69 já fazia espetáculos sozinha, sem os colegas da Emissora Nacional. Houve depois os espetáculos do Marques Vidal, em que perdi a voz, logo a seguir à 'Desfolhada' (canção com que venceu o 'Festival RTP da Canção' de 1969). Se pensarem que já cantei mais de 400 canções…

Mas lembra-se de no início tremer que nem varas verdes?
Não, é completamente o contrário. Agora é que tremo que nem varas verdes.

Então, está em pânico com este último concerto?
Não é bem pânico. É aflição, é respeito, são nervos, não vou dizer que não. Se dissesse que não tinha nervos era inconsciente. Qualquer pessoa que pise um palco e diga que não tem medo nenhum está a mentir.

"Posso ter feito asneiras, que as fiz, como todos nós. Mas acho que tolinha nunca fui. (...) Hoje estou mais calma e sou capaz de calar algumas coisas. Só para não levantar atritos"

O facto de saber que vai haver surpresas está a deixá-la um bocadinho inquieta?
Não, porque sei que estou muito bem acompanhada. E as pessoas que me vão fazer as surpresas sabem bem o bem que me vão fazer.

Mas vão emocioná-la.
Eu quero ver se não choro. Mas como acabei de chorar na RTP a ver ao vivo o FF a cantar uma das minhas cantigas, é natural que isso aconteça. E depois vai ser uma maçada porque tenho que retocar o rímel (risos). Vou tentar não chorar. Sei que vai ser difícil.

Explique-nos lá como é que uma mulher que ninguém cala, decide agora ela própria calar-se?
Já chega. São 65 anos. A cantar. A estudar poemas. A ter nervos. A ir para o cabeleireiro. A maquilhar-me. A arranjar mala. A escolher os fatos e os sapatos. Ter de conduzir.

Está cansada. Já chega, é isso?!
Chega. Terei uma saudade lavada. Não terei uma saudade de lágrimas. É mentira, não terei esse tipo de saudade. Sei que não tenho porque nestes dois últimos anos estive em casa. Meteu-se a pandemia e tenho vagamente cantado. Já estou habituada a estar sozinha. O Varela (Silva) morreu há 26 anos e eu vivo sozinha desde então.

...
Varela Silva e Simone Foto: arquivo

4. AS LOUCURAS

Habituou-se.
Habituei. Embora tenha filhos e netos que vejo com alguma frequência. Eles não vivem comigo e eu não vivo com eles e é daquelas coisas que me agrada muito. Ser capaz de estar sozinha, de ter a cabeça no sítio. Bem, andar, agora é de Uber ou de Táxi.

Explique-nos que história é essa de os seus filhos não quererem que conduza?
Porque eu a conduzir sou um horror. Passo-me com os disparates e grito que as pessoas tiraram a carta na Farinha Amparo. Faço gestos assim (e exemplifica, dando gargalhadas).

Mas nunca teve acidentes?
Nunca. Minto, ia tendo dois grandes acidentes que não aconteceram devido à minha destreza e experiência. Não por minha responsabilidade.

"Eu a conduzir sou um horror. Passo-me com os disparates e grito que as pessoas tiraram a carta na Farinha Amparo. Faço gestos assim..."

Conte-nos lá como é que foi.
Um foi quando ia fazer um espetáculo a Santa Margarida e num camião, com três senhores dentro, começaram a brincar comigo. Quando eu os ia ultrapassar, guinaram para o meu lado. A sorte foi eu ter tido a perceção disso e ter acelerado. E outra foi uma vez que vinha de um espetáculo do Porto, já de madrugada. Vínhamos nas grandes curvas da estrada nacional, ali em Leiria, ainda nem havia a autoestrada. Eu tinha um Mini e uma camioneta muito grande, daquelas que têm muitas luzes, é ultrapassada numa curva por outra camioneta. Atirei o carro para a berma, o carro voltou à estrada, esteve quase para capotar e depois parou. E olhe, depois parámos num sítio para comer carapaus fritos e beber vinho tinto.

Com a maior descontração do mundo.
Pois, e depois quem é que dizia que eu conseguia pegar no carro para chegar a Lisboa?

Assustou-se.
Assustei-me, mas depois éramos um bocado frescas e bebíamos em convívios pelo caminho.

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Simone

Nunca teve medo de ser apanhada.
Só tive medo de ser apanhada um dia que fui a casa desta senhora (aponta para Fátima Bernardo) e dei por mim em Almada a perguntar onde é que era a ponte 25 de Abril. Ai meu Deus. Sempre encostada à direita e sempre a 50 Km/hora. Felizmente nunca me apanharam. Se tenho sido apanhada…

Ou seja, pisou o risco várias vezes.
Pisei, nesse aspeto pisei. Não pisei demais. Nunca fiz asneiras nem provoquei acidentes.

Hoje em dia é que há tantos impedimentos e regras para tudo.
Há, mas hoje em dia conduz-se pior. Há um desrespeito total por tudo e por todos. E eu ainda venho do tempo de entrar em casa do meu filho e dizer: 'Com licença'. Estou a entrar na casa dele e não é a minha. Isto não é por obrigação. É uma questão de educação. Na minha casa ninguém se sentava à mesa sem estar o meu pai. Não era assim por obrigação, era assim por devoção, por amor. E ainda hoje ninguém se senta na mesa sem a mãe e avó se sentar primeiro.


5. A FAMÍLIA 

Isso tem a ver com berço e com educação.
Sim, os meus netos tiram-me o casaco, puxam-me a cadeira, vem-me buscar cá abaixo à entrada do prédio. Eu acho que é por amor e isso deixa-me muito feliz.

É uma mulher feliz?
Tenho a obrigação de ser uma mulher feliz. Porquê? Tenho uma casa minha que paguei e comprei com o meu dinheiro. Tenho uma família maravilhosa. Dois filhos e quatro netos praticamente todos formados. Todos de espinha direita. Isso para mim é o mais importante. O meu pai era uma pessoa muito amada e respeitada e incutiu nos netos uma noção de verdade e de honestidade que, para mim, era importante. O meu pai era um homem muito honesto.

O seu pai não era 100% português (era de origem holandesa). Isso ajudou a que a mentalidade fosse um bocadinho diferente em casa?
Atenção, o meu pai era uma pessoa rígida. Não era pessoa para se brincar.

Independentemente da rigidez e do conservadorismo…
Ai conservador é que ele não era senão não tinha aturado esta filha. Se ele fosse conservador tinha-me posto na rua quando fugi do meu marido e voltei para casa dele.

Era um homem da sua época.
Era e foi um pai e um avô extraordinário.

"Tenho a obrigação de ser uma mulher feliz. Porquê? Tenho uma casa minha que paguei e comprei com o meu dinheiro. Tenho uma família maravilhosa. Dois filhos e quatro netos praticamente todos formados. Todos de espinha direita. Isso para mim é o mais importante."

Mas o facto de não ser português se calhar ajudou muito a que olhasse para si e para a sua irreverência de forma diferente.
Talvez. Mas não lhe sei dizer porque temos um grande pecado na nossa família: nós conversamos pouco.

Ai é? Mas mesmo com os seus filhos?
Acho que olhamos uns para os outros e o assunto já está falado.

Há cumplicidade e química no olhar.
Há, mas é bom conversar sobre as coisas.

Houve muitas coisas que ficaram por dizer ao seu pai e à sua mãe?
Penso que não. Eles morreram quando eu tinha 30 anos. Dos 30 aos meus 80 vai uma vida inteira.

...
Simone

Tem mágoa por algo que não lhes disse?
Não, acho que não. Eu não precisava de falar muito com a minha mãe.

Quando eles a apoiaram na fuga e no regresso à casa de família também houve pouca conversa?
Eu disse que não voltava para o meu marido mas eles sabiam porque é que eu estava a dizer isso. Sabiam os meus porquês.

A educação do seu pai fê-lo compreender isso.
Ele não compreendeu por educação, compreendeu e aceitou por amor.

Sabia que não era um capricho seu.
Sabia. Ninguém toma uma atitude de fugir da casa onde vive com o marido por capricho. O meu pai era uma pessoa correta. Lembro-me de estar grávida da minha filha, o pai dela a estudar no Porto e ele a passear comigo de braço dado em Alvalade. As pessoas perguntavam onde estava o pai da criança. O meu pai nunca se escondeu atrás de coisa nenhuma. De tal maneira que houve quem achasse que o meu pai é que era o pai da criança. O meu pai foi o meu maior exemplo de vida.

6. O LEGADO

O legado que a Simone passa às novas gerações de mulheres é o de terem coragem de dizer o que pensam independentemente das convenções?
Se eu conseguir passar às mulheres do meu país algumas coisas fico muito feliz. Se duas ou três mulheres foram capazes de tomar atitudes diferentes – e que acharam que tinham medo de tomar e que as tomaram porque eu, de alguma forma, disse alguma coisa – ficou muito feliz por isso. As mulheres hoje tem uma voz mais ativa. Ainda não têm a que deviam ter na política.

Mas a Simone foi uma precursora dessas mulheres que passaram a ter uma palavra a dizer.
Ó querido, sei lá. Eu disse aquilo que achei que devia dizer.

Hoje em dia há muitas mulheres a serem Simone?
Ainda bem coração que as há. Felizmente existem.

"Ninguém toma uma atitude de fugir da casa onde vive com o marido por capricho. O meu pai era uma pessoa correta. Lembro-me de estar grávida da minha filha, o pai dela a estudar no Porto e ele a passear comigo de braço dado em Alvalade. As pessoas perguntavam onde estava o pai da criança."

Mas esteve sozinha durante muitos anos.
Estive.

Foi duro.
Foi. Foi muito duro. Não lhe posso dizer que tenha sido fácil.

Levou muita pancada da sociedade.
Levei (sorri). Levei alguma, mas ainda estou aqui para as curvas para levar mais umas pancaditas.

...
Simone em palco

Sentiu sempre essa necessidade de ser fora da caixa?
É uma coisa natural. É minha. Não foi: "Olha, agora vou ser diferente".

Provocadora?
Não, não, nada.

Por falar em pai, o pai dos seus filhos faleceu agora.
Faleceu. Sinceramente não o via há 30 ou 40 anos.

Foi ao funeral?
Não. Ele era casado com outra senhora. Tive pena quando a minha filha me deu a notícia e chorei.

Chorou?
Sim, chorei. Não estive a soluçar o dia todo, mas chorei. Tive pena, ele morreu com 91 anos, velhinho. Falei com ele durante uns tempos, mas depois o contacto passou a ser mais com a Eduarda.

Consegue perceber por que razão teve pena?
Ó meu querido, tive pena porque era o pai dos meus filhos.

Foi o segundo homem que mais amou na vida depois do Varela?
(Longa pausa) Não! Gostei muito dele durante uma temporada. Começou e acabou.

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