
O tempo não acalma a dor e as respostas aos porquês, que agora ouve em tribunal, estão longe de a apaziguar. Quase três anos após a trágica morte da filha mais nova, Sara Carreira, Fernanda Antunes é uma mãe dilacerada pelo sofrimento e os últimos dias têm sido de uma angústia crescente para uma mãe, que está longe de cumprir o luto.
Fernanda tem marcado presença em todas as sessões no Tribunal de Santarém, mas nem sempre consegue suportar a dureza dos depoimentos sobre o que aconteceu na noite que lhe roubou um dos grandes amores da sua vida, a sua menina. De óculos escuros, mantém a cabeça baixa, enquanto as lágrimas teimam em não parar de cair e nos relatos mais pormenorizados, o seu coração não aguenta, abandonado a sala pela mesma porta lateral por onde entrou desde o início deste doloroso processo.
Aconteceu várias vezes ao longo dos últimos dias, quando a dor e a revolta a levaram ao limite. O depoimento do condutor que originou a sequência de acidentes, Paulo Neves, foi um dos exemplos mais flagrantes. Fernanda, assim como Tony, conhecem o processo de lés a lés. Já o leram, vezes sem conta, à procura de um consolo que não encontram, mas ouvir, da boca do arguido, que conduzia alcoolizado e tinha consciência disso, acicata a dor e a mãe de Sara teve mesmo de sair da sala a meio do relato, sendo confortada por Tony.
Matêm-se unidos na dor, mas o cantor é a voz única do sofrimento, enquanto Fernanda opta por se manter na retaguarda. Fala pelos dois em nome da memória da filha, que honram a todo o custo. "Muitas vezes, queria não estar mais aqui", explicou Tony, para demonstrar o quanto o magoa tudo o que é dito no interior da sala, como é doloroso.
"Só peço humanidade. Não quero vinganças, não quero que vão para a cadeia. Quero que se ponham no meu lugar", afirma, lamentando não ter ouvido, da parte dos arguidos uma palavra de empatia, com exceção de Tiago Pacheco, que conduzia o último carro a embater no jipe sinistrado, quando Sara e Ivo ainda estavam no interior. "Tocou-me no ombro e disse que não tinha sido capaz de falar comigo antes."
"Quando isto acabar quero que sigam a sua vida. Não estarei em sede de recurso novamente aqui. Não há nada que possa fazer para que a minha filha volta, mas procurava a verdade. E não a tenho, porque preferiram as estratégias de advogados. O 'não me lembro'", conclui, referindo-se ao testemunho de Cristina Branco, que garante ter uma amnésia temporal desde o momento em que embateu no carro de Paulo Neves e ficou parada no meio da via, originando a sequência de acidentes qu se seguiram.
O RELATO CHOCANTE DE COMO TUDO ACONTECEU
Foi a 5 de dezembro de 2020 que a vida da família Carreira mudou para sempre. A mais nova do clã, Sara, de apenas 21 anos, regressava do Porto, onde tinha ido buscar a roupa da sua marca. Estávamos em confinamento e o tempo aconselhava prudência na condução: havia nevoeiro e uma chuva traiçoeira que não parava de cair, ao mesmo tempo que escurecia já muito, fruto do horário de inverno.
E se ao longo dos últimos quase três anos, já se tenha escrito como tudo aconteceu, ouvi-lo pelos próprios protagonistas tornou aquele dia incrivelmente real, na sala de tribunal onde os quatro arguidos se sentaram para fazer um relato detalhado dos acontecimentos: Cristina Branco, Ivo Lucas, Paulo Neves e Tiago Pacheco.
Comecemos com Paulo Neves que, seguindo uma linha temporal, é quem desencadeia a sequência dos acontecimentos. Alcoolizado, depois de um convívio com amigos, seguia a uma velocidade abaixo da lei, em torno de uns perigosos 30 km/h, de acordo com as perícias. Em tribunal, negou conduzir a essa velocidade, mas sim aquilo que considerou ser uma média de 80 km/h e afirmou que se sentia bem para conduzir, apesar de as análises indicarem uma taxa de álcool no sangue de 1,08 g/l.
Ora, é precisamente neste carro, que seguia em marcha lenta e sem sinalização que o indicasse, que a fadista Cristina Branco vai embater, numa sequência de acontecimentos que garante terem sido apagados da sua memória. "Tenho um lapso temporal. A minha memória imediatamente a seguir de sair da portagem é de pôr a mão no peito da minha filha e de travar e avisar: vamos bater", reiterou, acrescentando que se lembra de ter ligado os quatro piscas antes de abandonar a viatura que ficou imobilizada na autoestrada. O carro no qual Ivo Lucas viria a embater provocando o acidente fatal para Sara Carreira.
"Eu estava ao telefone com o 112, abraçada à minha filha, foi a minha filha que viu esse momento e não eu. A minha filha começa a gritar e eu olho e vejo um carro a sobrevoar as nossas cabeças", descreve, enquanto Tony, perturbado, leva as mãos à cabeça.
O relato da colega Cristina Branco deixou Tony Carreira visivelmente incomodado, e não foi apenas pela dureza daquilo que descreveu. Sem meias palavras, o cantor deixou duras críticas à forma como alguns dos arguidos alegaram falhas de memória na sala de audiências. "A amnésia está na moda nos tribunais", ironizou, desgostoso.
O MOMENTO MAIS DURO PARA TONY E FERNANDA EM TRIBUNAL
Rever as imagens do brutal acidente, ouvir por palavras dos intervenientes tudo o que aconteceu tem sido o mais doloroso regresso para Tony e Fernanda ao dia que destruiu as suas vidas. Nada do que se passe na sala de audiências poderá trazer-lhes a filha de volta, mas há quase três anos que o artista e a ex-companheira procuram uma verdade que os ajude a aceitar o que aconteceu e, de alguma forma, a fazer o processo de luto.
Mas por muito que soubessem que estes dias iriam ser arrasadores, aquilo que se passou em tribunal foi de uma violência atroz para qualquer mãe e pai que tenham perdido um filho.
O relato mais doloroso e chocante foi de Marco Baptista e da namorada, a veterinária Margarida Costa, as primeiras pessoas a chegar ao pé de Sara Carreira, já sem vida dentro do jipe acidentado. Fernanda Antunes só entrou na sala depois de a veterinária concluir a parte do depoimento em que dava conta de como encontrou Sara sem vida, enquanto Tony se manteve sempre de cabeça baixa ao ouvir aquelas palavras.
Margarida Costa e o namorado estavam a regressar de uma viagem à Serra da Estrela quando se depararam com a área onde tinha ocorrido a sequência de acidentes. Conseguiram contornar os obstáculos na via e pararam na berma. É quando a veterinária se aparecebe da presença de Ivo Lucas, em tronco nu, a deambular completamente desorientado.
"O rapaz estava muito desorientado a chamar pela namorada. Eu disse que vou ajudar, não levei o telemóvel, estava muito escuro, olhei para dentro do carro, não estava nada, e continuei à procura no meio dos destroços. Eu quando estacionei o Ivo estava mais perto da berma, estava muito desorientado", diz a testemunha, que se depara então com Sara Carreira no interior do jipe. "O meu instinto foi espreitar para dentro do carro e não a vi, quando fui ver mais perto é que vi. Foi nessa altura que chegou um senhor que era bombeiro e o meu namorado, o bombeiro estava ao telefone com o 112 e eu estava a descrever a vítima", recorda.
Nessa altura, tentou verificar a pulsação da jovem. "Fui logo ver se tinha pulso e não tinha. O senhor ao telefone estava a receber instruções e nós fazíamos conforme ele nos dizia. Ela estava muito presa ao cinto, não conseguíamos ver muito mais. Eu estava a tentar ver na carótida se tinha pulso, mas o corpo já estava frio".
Nessa altura, Margarida e o bombeiro recebiam indicações para cortar o cinto de segurança de Sara e colocar o seu corpo numa posição lateral de segurança.
"Vimos novamente o pulso e depois cortámos a camisola o suficiente para chegar ao pescoço para ver se tinha pulso, e não tinha. Ficamos lá ao pé dela, até alguém dizer algo em contrário e até chegar auxílio", descreve a médica.
Fernanda Antunes já não ouviu esta parte do testemunho, pois tinha abandonado a sala quando Marco Batista, namorado da veterinária, tinha descrito o mesmo cenário no testemunho anterior.
"Tentámos ver se tinha pulso não tinha, a minha namorada perguntou se podíamos cortar o cinto, quando nos deixaram eu cortei o cinto. A parte de cima do cinto estava junto às costas do banco. Eu provavelmente cortei o cinto no local mais próximo da presilha", disse Marco, o que levou Tony e Fernanda a deixarem a sala de audiências.
Desde que tudo aconteceu que Fernanda tem vivido a sua dor em recato. Foram poucas as vezes que falou publicamente sobre a filha e sempre que o fez foi para enaltecer a sua memória. "Sei que a Sara ficaria de feliz por mostrar o amor que sinto por ela como sempre mostrei. A Sara é um ser especial , único e que sempre deixou em qualquer sítio por onde tenha passado um sorriso e um carinho especial. Sempre foi a minha melhor amiga e companheira. É inexplicável a dor que sinto neste momento. Por todo o lado vejo homenagens à Sara e quero sentir sempre este carinho eterno por ela. Ela é de facto um ser iluminado , único e muito especial e conto com a força dela para conseguir de alguma forma seguir em frente. Gostaria que todas as mães tivessem a sorte que sempre tive. Passámos momentos inexplicáveis , e ela lembrava me todos os dias que me amava e que éramos companheiras de vida. Todas as pessoas que conheceram a Sara percebem o quanto ela era um ser diferente e único."
Destruída por uma dor que não atenua, Fernanda apoia-se no amor dos filhos, David e Mickael, e dos netos para continuar esta caminhada difícil sem a sua parceira de vida. Mas três anos depois, o sofrimento continua sem acalmar...