
Esteve em palco por mais de duas horas, caminhou entre o público, dedicou o tema ‘Into My Arms’ a Beatriz Lebre, a jovem assassinada pelo namorado e atirada ao rio Tejo em 2020 ("A mãe disse-me que era a música favorita dela", explicou), dedicou ‘O’Children’ a uma fã aniversariante de nome Paula, e despediu-se visivelmente emocionado. "Este é o nosso último concerto de uma digressão de três meses. Muito obrigado por virem ver-nos. A sério. Não posso dizer-vos o quanto isso significa para nós", justificou-se no último dia do Festival Meo Kalorama, num ato de verdadeira humildade.
Três meses antes, no Porto (pela terceira vez em nove anos, depois de 2013 e 2018), Nick Cave já tinha descido do palco à terra e andado pela cidade, como qualquer outro, entre o comum dos mortais. Fez-se notar no famoso restaurante Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira, do Chef Rui Paula, que conta com duas estrelas Michelin. Vegetariano, comeu atum com ostras, taco de frutos do mar e fez acompanhar a refeição com infusões e chás, porque, pasme-se, Nick Cave não bebe álcool.
Apareceu no restaurante o mais sóbrio e discreto possível de camisa branca e fato cinzento claro. Calmo, simpático e sempre afável, tirou fotos, teceu elogios e até prometeu voltar na companhia da mulher. Na véspera já se tinha feito notar, mas em palco, no Parque da Cidade, de fato mais escuro, a reclamar por atenção, a pregar aquela sua doutrina de dor e amor, que tantos fieis mobiliza. Mas afinal, que figura é esta que constantemente é posta à prova pela vida e que tanto deambula entre o infortúnio e a devoção, o sofrimento e a contrição, a angústia e a contemplação, o pesar e o consolo, a quem o próprio chef Rui Paula chama "um dos artistas mais brilhantes que há neste mundo"?
Tem quase um metro e noventa de altura, mas não é essa a razão pela qual é considerado uma das maiores figuras da história da música. Mais do que a estatura, é o olhar de Nick Cave enterrado sob largas sobrancelhas negras, mas sobretudo a sua mente perturbadora, a sua visão negra, às vezes quase fúnebre, que mais encanta quem gosta de fazer dos seus lamentos também as suas dores. Para muitos, Nick Cave, será mesmo mais do que um artista, um cantor, um músico, um letrista ou um compositor. Ele é uma experiência.
ESTA HISTÓRIA DAVA UM 'THRILLER'...
Desde muito cedo que a dor e o sofrimento são uma das pedras de toque no trabalho de Nick Cave. Nos últimos sete anos, o músico sofreu duas perdas irreparáveis, a morte de dois filhos e acabou a transformar o luto em arte. "A utilidade do sofrimento é a oportunidade de nos tornarmos seres humanos melhores. É o motor da nossa redenção. O que fazemos com o sofrimento? Pelo que posso ver, temos duas escolhas: ou o transformamos em outra coisa, ou nos agarramos a ele e, eventualmente, o passamos para outras pessoas", diz. "Há sempre dor ao nosso redor. Isso é uma das únicas coisas que está garantida na vida".
Foi em Maio deste ano que Nick Cave voltou a ser trespassado, pela segunda vez, por uma dor que não está ao alcance de todos imaginar, a morte de um filho. Jethro Lazenby, ator e modelo, (filho de Cave com a australiana Beau Lazenby) perdeu a vida aos 31 anos no dia 9 de Maio, em circunstâncias que nunca foram muito bem explicadas. Ainda assim, o advogado de Jethro veio a público revelar que o ator tinha sido diagnosticado com esquizofrenia, condição que estaria a afetar o seu raciocínio, dando a entender que podia ter-se tratado de um suicidio.
Nick Cave pediu paz, respeito e privacidade, mas a BBC revelaria que a morte tinha acontecido dois dias depois de Jethro ter saído da prisão, onde estava preso há um mês por violência doméstica contra a sua mãe (o jovem modelo admitiu ter agredido Beau Lazenby com uma joelhada na cara, em Melbourne). Cave viu o filho sair em liberdade mas sob a condição de se submeter a um tratamento de cura contra o abuso de substâncias e não contactar ou se aproximar da mãe durante dois anos (de trás vinham ainda outros crimes como um recente assalto a um supermercado em novembro de 2021).
Mas esta era a segunda vez que Nick Cave mergulhava no pesadelo de ver partir um filho prematuramente. A 14 de Julho de 2015, o cantor já havia chorado a morte de um dos filhos gémeos, Arthur Cave (o outro é Earl Cave, frutos do casamento com a atriz Susie Bick, a atual esposa), que perdia a vida, com apenas 15 anos, num acidente dramático ao cair de um penhasco em Brighton, no Reino Unido. Mais tarde veio a saber-se que o jovem estava sob o efeito de LSD, uma droga alucinogénica. A tragédia viria a ter um forte impacto na vida artística de Nick, uma vez que o levou a fazer o documentário 'One More Time with Feeling' e a gravar o álbum 'Ghosteen', em 2019.
O drama acabaria também por trazer consigo um episódio no mínimo esotérico, tão condizente com a personalidade enigmática e obscura de Cave. Foi o próprio quem o revelou. "Dois dias depois que o nosso filho morreu, a Susie e eu fomos para o penhasco onde ele caiu", começou por escrever no seu site The Red Hand Files. "Quando o Arthur era criança, ele falava de joaninhas. Ele amava, desenhava, identificava-se e até falava com elas. Quando nos sentámos, uma joaninha pousou na mão de Susie. Nós vimos, mas não dissemos nada, porque não estávamos dispostos a ignorar a tragédia com um pensamento mágico. Quando voltamos para casa, enquanto eu abria a porta, outra joaninha pousou na minha mão e quando eu estava a trabalhar no último álbum uma praga de joaninhas entrou no estúdio. Desde então só vejo joaninhas em todos os lugares".
"Dois dias depois que o nosso filho morreu, a Susie e eu fomos para o penhasco onde ele caiu. Quando o Arthur era criança, ele falava de joaninhas. Quando nos sentámos, uma joaninha pousou na mão de Susie. Nós vimos, mas não dissemos nada. Quando voltamos para casa, enquanto eu abria a porta, outra joaninha pousou na minha mão e quando eu estava a trabalhar no último álbum uma praga de joaninhas entrou no estúdio. Desde então só vejo joaninhas em todos os lugares"
MORTE, ROUBO... O PASSADO IGUALMENTE CONTURBADO
Mas os dramas na vida de Cave, não se resumem, contudo, à fase adulta. O seu crescimento foi também algo conturbado e recheado de episódios marcantes. Nascido a 23 de setembro de 1957 em Warracknabeal, pequena cidade no estado de Victoria (Austrália), filho de um professor e de uma bibliotecária, teve de lidar, aos 19 anos, com a morte do pai, vitima de um trágico acidente de viação. O cantor soube da noticia quando estava detido por roubo, e isso é algo pelo qual o próprio ainda hoje não se perdoa. "O meu pai morreu no momento da minha vida em que eu estava mais confuso", admitiria mais tarde em entrevista, reconhecendo que a perda criou um "vácuo" na sua vida.
Apaixonado por música, começou a cantar no coro da Catedral da Santíssima Trindade de Wangaratta, também em Victoria, tendo começado, por lá, a aprender as primeiras técnicas vocais que lhe viriam a servir para a vida artística. Expulso da escola aos 13 anos por mau comportamento viria a frequentar o colégio interno de Caulfield Grammar School. Ainda estudou pintura, mas acabaria por se dedicar à musica, universo que o levaria aos primeiros contactos com as drogas e especialmente com a heroína (recentemente viria a reconhecer que foi salvo pelos Narcóticos Anónimos). Nos primeiros anos da sua carreira, com a banda Birthday Party, o cantor australiano era uma figura quase intratável sendo conhecido como "Nick contra o mundo". Muitos dos seus concertos terminavam antes de tempo quando o músico se lembrava de saltar do palco para se envolver em pancadaria com o público.
Namorou com as cantoras Anita Lane, PJ Harvey (a separação deu origem ao álbum 'The Boatman's Call' de 1997) e Kylie Minogue, mas atualmente, aos 64 anos, mantém um casamento estável com Susy Bick.
Já viveu em Berlim e em S.Paulo (casou no Brasil com a primeira mulher, a jornalista Viviane Carneiro com quem teve um filho, Luke), mas hoje diz que mora numa "casa minúscula, secreta e cor de rosa" em Londres. É padrinho da filha do grande amigo Michael Hutchence, dos INXS, cuja morte também foi um grande choque para Cave (o cantor interpertou 'Into My Arms' no funeral televisionado do músico).
Ávido leitor da Bíblia, que cita várias vezes, diz-se, no entanto critico da religião organizada e que se reserva ao direito da possibilidade de acreditar na existência de um Deus qualquer. "Há algo de divino a acontecer nas minhas músicas", diz. Amen!, dizemos nós.