
Quem vê as recentes imagens da população apavorada em Cabul, centenas de pessoas a tentar fugir, talvez tenha dificuldade em imaginar aquela cidade como a "Paris da Ásia Central", com mulheres de minissaia a conversar com amigos e até em manifestações. Calma, as burcas também andavam por lá. E sim, era um risco subir as bainhas das roupas, porque os homens que tentam mandar nos corpos das mulheres estão sempre presentes, mas alguns daqueles panos azuis deixavam exibir sem medos as calças largas e os saltos altos ocidentais. Era a época de ouro do Afeganistão, mais de 30 anos antes dos estudantes que iam formar o temido grupo talibã.
O ‘New York Times’ conta numa análise antiga como o período entre os anos 1930 e 1978 foi considerado um oásis de modernização no país. Mais especificamente os anos 1960, a mesma década em que se viam minissaias nas universidades, revelaram-se uma curta era da reforma democrática.
"Sempre pensei que era um dos lugares mais bonitos do mundo", disse àquele jornal o ex-diretor do centro de estudos afegãos da Universidade do Nebraska, Thomas Gouttierre, que viveu no Afeganistão entre 1964 e 1974.
Não era o único, o professor e fotógrafo amador Bill Podlich, que documentou o país entre 1967 e 1969, não se cansava de fotografar mulheres a conversar nos jardins, a passear com amigas nas ruas e nas escolas. Inclusive, a própria presença de Bill Podlich no país era um sinal da tentativa de modernização. Como especialista em Educação, o fotógrafo amador dava aulas na Escola Superior de Professores de Cabul.
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Tudo começou a desmoronar em 1979, com o golpe que levou os soviéticos ao poder durante um década e provocou depois uma guerra civil de sete anos, até à ascensão dos talibãs em 1996, com as leituras rigorosas da xaria e as listas de proibições e obrigações.
As mulheres ficaram proibidas de usar produtos de cosmética, de estudar, trabalhar, sair de casa sem a companhia de uma figura masculina e outras 25 regras que se juntam às proibições para ambos os sexos. Não é de estranhar que o maior receio das mulheres agora seja o resgate desta mesma lista.
Foram cinco anos de terror para as mulheres, casamentos forçados, maus cuidados de saúde e aplicações bárbaras da lei. Até 2001.
Apesar da guerra com os Estados Unidos, o afastamento do grupo terrorista permitiu às mulheres regressarem às salas de aula e ao mercado de trabalho. A esperança média de vida das mulheres saltou dos 57 para 66 anos nos últimos 20 anos. Mas parece ter sido mais um oásis de oportunidades que acabou esta semana, com a queda de Cabul para os talibãs.
ARMADA COM UM BLOGUE
Quem sentiu na pele a forma como o grupo terrorista opera foi a jovem paquistanesa Malala Yousafzai, que aos 11 anos era já considerada uma ameaça pelos talibãs. E tudo porque era autora de um blogue que defendia a educação das mulheres.
Aos 15 anos, Malala viu o pior acontecer ao ser atingida com tiros na cabeça por "promover a educação secular", disse o grupo na altura. A jovem passou três meses a receber tratamento num hospital no Reino Unido e saiu mais forte do que podia imaginar.
CARRASCO VOLTA A AMEAÇAR
"Conto a minha história não porque é única, mas porque é a história de muitas raparigas", afirmou Malala no site oficial. Com um Nobel da Paz em casa, e um curso da Universidade Oxford que terminou no ano passado enquanto enfrentava a pandemia, Malala recebeu este ano uma segunda ameaça do mesmo homem que puxou o gatilho contra ela em 2012. "Não vai haver erro", disse Ehsanullah Ehsan a Malala no Twitter, pouco antes de ser bloqueado por aquela rede social.
A experiência que teve e continua a ter com os talibãs, apesar de estar debaixo dos olhos do mundo, não deixam dúvidas a Malala, de 24 anos de idade: "Vimos em choque os Talibãs a tomar o controlo do Afeganistão. Estou profundamente preocupada com as mulheres, as minorias e todos os defensores dos direitos humanos. As potências globais, regionais e locais devem exigir um cessar-fogo imediato, fornecer ajuda humanitária urgente e proteger refugiados e civis".
Os receios da jovem ativista chegam numa altura em que os talibãs fizeram uma conferência de imprensa tentando acalmar os ânimos dos analistas que pensam que os direitos adquiridos nos últimos 20 anos não serão respeitados, mas há pouca fé nas palavras destes homens.
A NATUREZA DOS TALIBÃS
Em abril deste ano, ainda ninguém pensava que os talibãs voltariam a Cabul sem qualquer resistência, mulheres do Norte do Afeganistão revelavam que as regras famosas nos anos 1990 estavam a ser impostas naquela região. Sem surpresa, as escolas foram os primeiros alvos.
De acordo com uma estudante de 18 anos, em declarações à ‘Time’, uma escola secundária em Injil recebeu em abril "panfletos e cartas" pedindo que parassem de ensinar às raparigas. Os documentos têm os selos do Emirado Islâmico, o nome que os talibãs usam para eles mesmos.
O medo também recai sobre a liberdade de circulação. Atualmente, cerca de 30% da população que trabalha nos serviços públicos são mulheres, muitas delas são já o ganha-pão da família, de acordo com o agora ex-governo afegão, citado pela ‘VOA’.
Ao ‘Guardian’ outra estudante deixa um alerta à comunidade internacional: "Quero que o mundo saiba que os talibãs estão a enganá-los. Eles não mudaram. Estão a usar tecnologia e estão no Twitter, mas têm os mesmos pensamentos que tinham há 20 anos. Vou perder a minha formação e, claro, isto é responsabilidade dos norte-americanos, não dos talibãs – isto é só a natureza deles".