
A apoquentá-la tinha problemas chatos mas não impeditivos de uma vida tranquila: algumas questões do foro ginecológico, que não conseguia entender à luz da uma existência dedicada sempre ao mesmo parceiro, e também lapsos de memória: Gisèle tinha dificuldade em preencher alguns vazios da mente, buracos negros. Preocupava-se, julgava que podia ser mais uma a calhar na roleta do Alzheimer, ainda que os médicos a descansassem. Estava tudo bem com ela, talvez uma ligeira depressão, nada que não tivesse remédio.
Até que ponto desconhecia o que se passava na própria vida? A resposta chegou em 2020 quando foi Gisèle foi chamada à esquadra por um assunto sério. A questão começou por ser colocada da seguinte forma: o marido tinha sido apanhado a filmar mulheres por debaixo das saias em locais públicos. Ela riu-se. "Quem, o Dominique? Não, deve ter sido uma brincadeira de mau gosto". "É um marido incrível". É impossível não se ficar mal disposto com o que aconteceu a seguir. Medindo as palavras, os investigadores falaram a Gisèle da tal pasta secreta que Dominic, um simpático avô de família, tinha no computador e que escondia mais de 20 mil fotos e filmes da tortura que Gisèle sofreu, no lugar mais escuro da sua consciência, às mãos de 72 homens, o modus operandi sempre o mesmo. Durante o jantar, escondidos numa refeição feliz, estavam os comprimidos que a deixariam inerte, drogada até ficar inconsciente, o corpo uma papa para que dele se fizesse o que quisesse, violada por todos aqueles que o marido convidou para que partilhassem o seu banquete, mesmo que não lhe pertencesse.
Dos 72 homens as autoridades conseguiram identificar 51, todos eles condenados na última quinta-feira, dia 19 de dezembro, numa sentença histórica que tornou pública um drama de horror e abusos, com Dominique Pelicot a ser sujeito à pena máxima em França: 20 anos de prisão pelo crime de violação agravada, ficando provado que, entre julho de 2011 e outubro de 2020, chamou 51 homens para abusarem da sua própria mulher, enquanto esta se encontrava num estado descrito como "próximo do coma".
Depois da audiência, as reações multiplicaram-se. Houve quem considerasse que se fez justiça, outros que as penas foram brandas, mas não há duvida de que Gisèle ficará na História não só do feminismo, mas principalmente desta luta incessante para que a nossa sociedade seja minimamente igualitária, mais humana, menos bárbara para com as mulheres. Podia ter-se escondido, não ter de lidar com os olhares de pena dos vizinhos, nem com todas vozes que já não deviam fazer coro, mas quis um julgamento público, dar a cara, porque, como a própria diz, não é ela que tem de ter vergonha.
"Quando somos violadas, sentimo-nos envergonhadas, mas não somos nós que temos de nos sentir envergonhadas, são eles que têm de se sentir envergonhados", disse, de queixo erguido, mostrando que é tempo de a "vergonha mudar de lado". "Claro que hoje não me sinto responsável por nada. Hoje, acima de tudo, sou uma vítima."
Ao longo dos 64 dias de audiência, Gisèle esteve sempre lá a encarar aqueles que se serviram do seu corpo como se estivessem num buffet livre, bar aberto, happy hour para todos. Muitos deles eram seus vizinhos, homens que depois de a terem violado se cruzaram com ela nos dias, meses seguintes e lhe perguntavam alegremente como estavam os filhos, se também dera pela trovoada da véspera, falavam do boletim meteorológico, que estava incerto. Em todo esse tempo, nenhum deles pôs a mão na monstruosidade da sua consciência, todos a encobrirem-se numa fraternidade doentia.
Fizeram-na sentir "uma boneca de trapos", um "corpo em ruínas", disse Gisèle, mudaram para sempre a forma como alguma vez se irá relacionar com o próximo.
Em tribunal, Gisèle foi de uma dignidade sem precedentes, num testemunho honesto e brutal.
Ele, um clássico, desculpou-se com os traumas, que também tinha sido violado por duas vezes no passado. "Não se nasce assim, tornamo-nos assim". Curioso que até nos traumas homens e mulheres conhecem 'direitos' diferentes: elas reprimem, choram, fecham-se nas relações, gastam rios de dinheiro em ansiolíticos e terapia, rezam para que os filhos homens não sigam padrões, para que as filhas escapem à sina de tantas mulheres. Eles, não todos claro, encolhem os ombros e escudam-se nas memórias traumáticas, nas infâncias dramáticas. +Fizeram-me, logo faço, repito'.
À luz dessa realidade, que direito teria então Gisèle quando o seu corpo foi abusado por mais de 70 homens, incluindo aquele em que mais confiava, sobre o qual falava com orgulho, dizia ser a sorte de uma vida...
"Para mim, era uma pessoa em quem eu confiava inteiramente. Como é que o homem perfeito pode ter chegado a isto? Como é que me pôde trair até este ponto? Como é que trouxeste estes estranhos para o meu quarto?", disse, para de seguida acrescentar. "O perfil de um violador não é o de alguém que se encontra num parque de estacionamento à noite. Um violador pode também estar na família, entre os nossos amigos."
No final, Dominique assumiu a culpa, mas até ao fim quis partilhar o barco com os seus pares, homens, como se o que interessasse aqui fosse ver quem tem mais culpa, quem foi mais monstro.
"Sou um violador como todos os que estão nesta sala. Todos eles sabiam, não podem dizer o contrário."
Na sala de audiências, quase todos os abusadores se retrataram do irretratável. Romain V, que recebeu a pena mais pesada a seguir a Dominique, 15 anos de prisão, pediu perdão a Gisèle, ainda que a palavra parecesse superficial perante o horror dos seus atos. Seropositivo, foi seis vezes ao apartamento do casal, seis vezes violou a mulher de Dominique.
Outros, assobiaram para o lado, disseram que achavam que ela estava a fingir ou até mesmo a jogar um jogo, que o facto de o marido ter consentido validava o ato sexual, como se falassemos de uma ganadaria, os animais listados como sendo propriedade de.
Durante todo este tempo, os três filhos de Gisèle e Dominique também lá estavam, ao lado de uma mãe que até há pouco tempo não sabiam ser de tanta coragem. Revoltados, também eles se enojam por ter vivido nesta mentira a que chamam de "violação em família", a filha do meio, Caroline Darion, de quem também havia fotografias seminua captadas por câmaras ocultas, exige saber a verdade.
"Nunca te toquei", disse o pai em julgamento, ainda que ninguém atribua crédito ao que diz um homem que durante nove anos conseguiu repetir e perpetuar todo este horror.
"Fui sacrificada no altar do vício. É a morte sobre uma cama. Não é um quarto, é um bloco operatório. Veem em mim um saco de lixo, uma boneca de trapos. Não se trata de cenas de sexo, mas de violação. É insuportável, insuportável", disse Gisèle, naquele que chamou o "o julgamento da cobardia", ainda que muitos lhe chamem o da verdade.
Gisèle tinha apenas 21 anos quando se casou com Dominique Pelicot, recentemente celebraram as bodas de ouro, uma vida (de mentira) juntos. Quanto desta existência é que Gisèle ainda não conhecerá, o que há para lá do que está registado nos vídeos, quanto horror a sua subconsciência lhe esconde? De entre as questões que vão para sempre corroer-lhe a mente, a francesa espera apenas que o seu testemunho possa travar alguma cabeça preversa, abrir as cancelas da prisão de alguma mulher. Se assim for, considera, já venceu.