
Dos anos 70 para cá, Jorge Fernando assumiu-se como um dos principais autores e compositores da música portuguesa. Tocou com Amália Rodrigues "ainda menino", sendo considerado pela diva do fado como "um filho". Participou por várias vezes no Festival RTP da canção onde, em 1985, popularizou o tema ‘Umbadá’ que lhe haveria de ficar colado à pele. Colaborou com nomes como Nuno da Câmara Pereira, Maria da Fé, Ana Moura, Sam The Kid ou António Zambujo, entre muitos outros. Tem descoberto e produzido novos fadistas sendo um dos responsáveis por toda uma nova geração do fado. O pretexto para passar em revista a vida e a obra de um dos maiores nomes e galãs da canção de Lisboa.
Numa altura em que assinala 50 anos de carreira, comecemos pelo final. Em Maio fez uma operação muito delicada ao coração. Foi uma situação de urgência?Não, eu já tinha sido avisado que tinha de fazer esta intervenção. O problema já me estava diagnosticado há muito tempo.
Mas que problema era esse?Eu nasci com uma válvula bicúspide, o que significa que, no meu coração, o sangue era bombeado por dois orifícios em vez de três que é o natural em qualquer pessoa.
E o que é que isso lhe provocava?Isso fazia aumentar a pressão sobre o coração e a aorta, e foi ela que começou a dar de si. Há seis anos tive o primeiro recado, que foi uma fibrilhação auricular, o quer dizer que o sangue em vez de estar a ser bombeado para o cérebro, voltava para os pulmões. Estive 15 dias internado e passei a ser vigiado.
Mas houve algo que precipitou agora a operação?Há dois meses, depois de umas análises que fiz, o médico disse-me logo: "Isto é para operar já, porque a aorta já está fora de controle". Antes da operação só me lembro de uma equipa de médicos enorme que assim que me viu disse logo: ‘Olha temos aqui um fadista!". E lembro-me da anestesista ter tido uma conversa muito bonita comigo enquanto eu adormecia. Agora digo que aquelas pessoas conhecem-me por dentro como ninguém (risos).
Mas em termos clínicos o que é que fez concretamente?Fiz uma operação de quase sete horas, de peito aberto, com o sangue a ser bombeado por uma máquina e o coração cá fora a ser trabalhado pelos médicos, para me porem uma válvula nova já com três orifícios para expandir o sangue, que não é artificial, mas sim orgânica. Trataram-me também da aorta e fecharam um apêndice onde os coágulos se formam e que podiam, mais tarde, dar origem a rupturas cerebrais ou AVC’s. Isto é que é o verdadeiro milagre. A minha esperança de vida, pelo menos em termos cardíacos, aumentou bastante.
"Fiz uma operação de quase sete horas, de peito aberto, com o sangue a ser bombeado por uma máquina e o coração cá fora a ser trabalhado pelos médicos"
Como foi o regresso aos palcos depois desta intervenção? Foi incrível. Foi no dia 27 de Junho. Cantei na mesma noite do Michael Bolton nos Jardins do Marquês, em Oeiras. Eu já tinha perguntado ao médico se podia cantar e ele disse-me: "Você está ansioso vá lá. Eu se fosse cantar com o Michael Bolton também estaria", ao que eu respondi: "Não é isso doutor. Eu estou é ansioso para cantar para a minha gente". Uns dias antes já tinha cantado no Porto num pequeno ensaio mas tinham sido apenas quatro fados.
O escritor e jornalista Luís Osório chegou a comentar numa crónica que o Jorge Fernando não podia dar-se ao luxo de morrer. Como sentiu a preocupação das pessoas pelo seu estado de saúde?Epá foi maravilhoso. Um amigo enviou-me essa crónica do Luís Osório e eu até chorei.
E que cuidados é que tem de ter agora?Faço apenas uma medicação que poderei largar em breve, mas neste momento já posso fazer a minha vida normal. Até já posso correr.
Mas sente melhorias no seu dia a dia?Claro que sim. Hoje respiro de outra forma e já não sinto aquele peso no peito que sentia, a não ser por causa das tristezas que vou vendo todos os dias na televisão e nos telejornais. Mas esse é outro peso. Tirando isso, hoje sou um homem feliz.
E dizia há tempos, na brincadeira, que já podia fazer outro filho!Sim. Já posso fazer mais quatro ou cinco (risos). O doutor Rui Rodrigues que me operou disse-me mesmo: "Eu agora não gostava de estar na pele da Fábia!" (risos).
Mas pensa em mais filhos?Acho que sim. A Fábia gostava de ter mais um filho. Mas o que importa dizer é que neste momento sou um homem feliz. E espero ter muitos mais anos pela frente porque acho que estou aqui numa missão. É por isso que descubro vozes e dou a mão a tantos artistas e produzo tanta gente nova
O Jorge e a Fábia foram pais há pouco mais de um ano. Como foi a chegada à sua vida de uma nova filha aos 66 anos? Eu não posso dizer que foi um renascer, mas foi um impulso para trazer à minha vida novos estímulos que até então já os tinha perdido. Agora sou obrigado a pensar que tenho que andar por aqui mais um tempo. Agora cuido-me mais e até tenho preocupações com o que como que era uma coisa que eu não ligava. Gostava muito de ver esta menina a crescer como vi os meus outros filhos.
"A Fábia gostava de ter mais um filho. Mas o que importa dizer é que neste momento sou um homem feliz. E espero ter muitos mais anos pela frente porque acho que estou aqui numa missão".
E como é que este novo elemento foi recebido pelo resto da família?Estão encantados. Repare-se que os meus oito netos são todos mais velhos do que a minha filha Maria Inês. Por isso, ela agora é a caçula da equipa. E depois como é muito engraçada, isso também ajuda.
Não se sabe ainda o que ela irá escolher para fazer na vida, mas a verdade é que nenhum dos seus quatro filhos seguiu profissionalmente o fado. Lamenta que isso não tenha acontecido?Uma das minhas filhas canta e já teve várias casas de fado e outro do meus filhos também canta e toca comigo, mas profissionalmente está ligado a estas coisas das tecnologias modernas e dá apoio a um banco.
A SOMBRA DE AMÁLIA
O Jorge vive há 14 anos um relacionamento com a Fabia Rebordão, curiosamente prima de Amália Rodrigues que o tratava a si por "filho". Acredita que isto estava escrito para acontecer? A nossa história de amor começa como todas as histórias de amor, quando de repente estamos a sentir algo por alguém e não percebemos bem o que é. É uma história de amor muito bonita que já leva 14 anos.
O que é que consegue rever nela que eram características da Amália?Muita coisa, a cara, o perfil, algumas frases, a voz e o timbre. O canto dela lembra-me muito a Amália. Não é fingido, é muito natural, ao contrário de algumas pessoas que para mostrarem que estão a sentir o fado, parece que precisam de chorar, transformando aquilo numa quase novela venezuelana. Quando estou a assistir de longe a um concerto da Fábia parece muito que estou a ver a Amália.
Vocês os dois falam muito dela?Sim, porque um dos grandes desgostos da Fábia foi nunca ter conhecido a Amália. Elas são primas em terceiro grau, o que é consanguíneo ainda. E curiosamente acabo também por ter uma filha que é consanguínea da Amália. O destino é incrivel e arranjou maneira de me deixar ainda mais ligado à Amália.
"Os anos que eu estive com a Amália foram muito intensos. Ela foi das pessoas mais inteligentes com que me cruzei na vida. Era uma pessoa que me levou a perceber que Deus não é justo, porque pôs tudo de bom dentro de uma mesma pessoa e noutras não"
Recuando no tempo, como é que começou essa sua ligação à Amalia?O primeiro contacto que tive com ela foi no Aeroporto. Na altura, eu estava a gravar um disco em estúdio com o António Chaínho, o Nobre Costa, o José Maria Nóbrega e o Pedro Nóbrega, quando recebi uma chamada do Carlos Gonçalves, o guitarrista da Amália, a perguntar se eu queria tocar para ela. E eu respondi-lhe logo: "Mas quem é que não quer?". Saí do estúdio às 18h00, às 19h00 já estava com o Carlos, fui provar um smoking e no dia a seguir parti para o Luxemburgo para substituir o Manuel Martins, o viola da abaixo que tinha adoecido de repente. E então foi no Aeroporto que a conheci. Eu disse: "Olá Dona Amália". E ela respondeu: "Só Amália por favor!". E acho que houve logo ali uma empatia.
O que aprendeu com ela?Tanta coisa. Eu, aliás, sempre gostei muito mais de aprender do que de ensinar. Os anos que eu estive com a Amália foram muito intensos. Ela foi das pessoas mais inteligentes com que me cruzei na vida. Era uma pessoa que me levou a perceber que Deus não é justo, porque pôs tudo de bom dentro de uma mesma pessoa e noutras não. Tudo na Amália era perfeito. E eu menino, de 20 anos, chão pronto a ser semeado, a apanhar com aquela sementeira toda. Há frases que eu ouvi dela que me ficaram para a vida, como ensinamentos. Lembro-me de a ter ouvido dizer: "Muitas vezes não disse o que devia, mas nunca disse o que não devia".
Com tantos anos de estrada, ficam muitas histórias para contar?Ui!!! Tantas. Lembro-me de uma que chegou a ser notícia nos jornais da época quando uma vez fomos tocar a uma localidade no Alentejo no mesmo dia em que tocavam os Heróis do Mar. Naquela altura os contratos deles já eram muito elaborados e específicos e falavam, por exemplo, em amperagem ou terra, ligação terra entenda-se, para evitar curtos-circuitos. E então quando chegámos à localidade qual não foi o nosso espanto quando vimos o palco coberto de terra (risos). Desculparam-se eles que aquilo estava escrito no contrato. Claro que isto é caricato, mas também é uma história muito bonita que diz do romantismo e da vontade deste povo em fazer coisas, mesmo que não estivesse preparado para isso. Também cheguei a tocar num estrado colocado entre dois tratores.
E como é que era andar pelo país numa altura em que ainda não existiam auto-estradas nem carrinhas com ar condicionado?Era penoso. Quando a Amália me ligava a dizer que tínhamos um concerto no Porto eu pensava logo: "pronto já está!". Na altura demorava-se seis horas a chegar ao Porto e para um menino de 20 anos aquilo não era a coisa mais estimulante, embora fôssemos parando muito pelo caminho.
E já se ganhava bem na altura?Sim. Mas posso dizer que o cachet dos fadistas nas noites de fado não mudou muito nos últimos 30 anos. Começou há pouco tempo a subir um pouco por conta desta rapaziada nova que já ganha um pouco melhor.
Cumprem-se agora 50 anos desde que compôs a emblemática canção 'Boa Noite Solidão' com apenas 16 anos. Como era o jovem Jorge Fernando nessa altura?Era um jovem que já não equacionava sequer outra coisa a não ser estar na música. Eu já cantava desde menino, muito influenciado pelo meu avô que tocava viola de fado e para mim não existia mais nada. A minha mãe queria muito que eu tirasse um canudo qualquer, até porque eu era muito bom aluno, mas não havia como evitar a música. Eu ainda tirei o curso Geral de Administração e Comércio, mas era uma coisa muito pouca para aquele tempo. A minha mãe só percebeu que não havia nada a fazer quando um dia cheguei a casa e lhe disse: "Olha mãe, vou tocar para a Amália!".
Escreveu ‘Boa Noite solidão’, para o Fernando Maurício, uma das maiores lendas do fado. Que história está por detrás dessa canção? Essa canção nasceu numa altura em que o Fernando Maurício andava em desamor com uma fadista. Contou-me a história e perguntou-me se eu queria escrever alguma coisa sobre isso. Lembro-me perfeitamente de escrever esses versos sentado na cama, no meu quarto no Barreiro, e a minha mãe a chamar-me para jantar. Quando terminei mostrei ao Mauricio, ele leu, olhou para mim e disse-me: "Epá vou já cantar isso". Hoje é um dos temas mais cantados da história do fado. Por isso, este ano, juntamente com o meu representante Paulo Gil, decidimos fazer um espetáculo de comemoração dos 50 anos do 'Boa Noite Solidão', até porque é um bom pretexto para juntar todos aqueles que têm estado na minha carreira e na minha vida.
Acha que estas gerações mais novas já olham para si como uma espécie de guru do fado?(risos) Não sei. O que eu acho é que os mais novos veem em mim um amigo pronto a ajudá-los e aconselhá-los. Eles sabem que sou o companheiro velho que aprendeu com os antigos e que tenho isso para lhes trazer.
Nestes 50 anos conseguiu aquilo que ambicionava e esperava?Tal como fazia em menino eu sou muito existencial. As coisas foram acontecendo e quando dou por mim estou com 66 anos, com gente que ainda me vai ver a cantar. Há meninos de 15 anos a cantar o 'Umbadá', quando ainda nem eram um projeto de gente quando eu fiz essa canção.