
Já lhe apeteceu, quando está a ver uma novela, que o ator que está ali, em sofrimento, num diálogo trágico, subitamente dissesse uma coisa completamente fora de contexto, um disparate qualquer que o levasse às lágrimas de tanto rir? Pois era esse um dos sonhos de Henrique Dias, um dos autores da novela sensação da RTP, 'Pôr do Sol'.
E com a ajuda de Manuel Pureza, Rui Melo e Roberto Pereira conseguiu tornar o sonho realidade.
Tudo começou com um simples telefonema. "A ideia é minha, do Pureza e do Rui Melo. O Manuel Pureza ligou ao Rui, a perguntar se tinha alguma coisa diferente e se ele tinha alguma ideia para um projecto. Ele disse que não, mas sabia que eu tinha. Ligaram-me os dois eu falei na ideia de fazer uma novela diferente. E ao falarmos logo ali construímos o esqueleto: a história de uma família rica, do problema das gémeas…e tudo mais", conta Henrique Dias à FLASH!.
Henrique não é propriamente uma figura desconhecida no guionísmo e autoria de textos. Basta ir ao IMDB - a maior base de dados de cinema e televisão - e para ver que já "meteu a mão" em todo o género de produtos: 'Cenas de Família' (RTP), 'Desliga a Televisão' (RTP), 'A Casa é Minha' (TVI) ou filmes como 'Virados do Avesso' e '7 Pecados Rurais' entre mais de 50 projectos.
O rosto de Henrique também não deve ser estranho ao leitor. Embora seja uma figura de bastidores, daquelas que dá tudo para passar despercebido numa multidão, houve um tempo em que Henrique foi casado com a "senhora televisão", Teresa Guiherme. E as imagens dessa época não mais o abandonaram.
Mas adiante.
Ao trio de autores da mini-novela (como a RTP decidiu chamar-lhe), juntou-se Roberto Pereira na elaboração dos primeiros dois episódios, que segundo Henrique, tinham que ter todos os clichés típicos de novelas: "A ideia, aparentemente, era criar uma história séria... e depois desconstruir tudo, misturar coerência e estupidez e com diálogos loucos. Sempre com os truques habituais das novelas: a gémea boa e a má, a rapariga rica que se apaixona pelo rapaz pobre, o tipo que só tem seis meses de vida… e cavalos, porque hoje não há novela sem cavalos!", conta.
"Era preciso a gémea boa e a má, a rapariga rica que se apaixona pelo rapaz pobre, o tipo que só tem seis meses de vida… e cavalos, porque hoje não há novela sem cavalos!"
A GRANDE HOMENAGEM AOS PIONEIROS E O MEDO DAS CONSEQUÊNCIAS
Obviamente que este não é o primeiro projecto deste género em Portugal (em especial nos anos 80) embora há muito não se fizesse nada do género. "Quando escrevemos isto sabíamos que já tinham existido dois projectos pioneiros: o 'Moita Carrasco', do Nicolau Breyner [no 'Eu Show Nico'], e 'O Diário de Marilu', do Herman José [em 'O Tal Canal']. Foram os pioneiros no género. Percebemos que era impossível que não se fizessem comparações, até porque mesmo eu, quando estava a escrever, tinha-os sempre presentes no meu imaginário", conta o autor.
Apesar de estarem empolgados com o projecto, que se está a revelar um sucesso na RTP, assim que este começou a tomar forma surgiram logo receios por parte de atores, autores e guionistas. Tinham medo de ser gozados. "Quando ouviram que íamos fazer uma sátira às novelas, as primeiras reacções das pessoas não foram boas. Recebemos alguns telefonemas e tudo. Mas depois de terem visto o primeiro episódio, ligaram todas a dizer que tinha sido giro, que tinham adorado e houve mesmo quem dissesse para ligar se fizéssemos outra temporada", recorda.
Medo foi, porém, algo que os autores não sentiram quando escreveram os guiões. Em 'Pôr do Sol' há referências a nomes conhecidos (Fanny, Cristina Ferreira, Sandra Felgueiras, Dolores Aveiro), programas de televisão ('Praça da Alegria', 'Preço Certo'), publicidade (a de um produto de peixe publicitado por Lourenço Ortigão e a uma bebidas inspirada num spot feito por Cláudia Vieira). Henrique Dias garante que tudo pode ser dito "sem ser vexatório". Aliás essa palavras estava na génese do projecto. "Quando começámos a fazer isto decidimos que isto não ia gozar com as novelas, mas sim brincar. Não ia ser nem vexatório nem humilhante, mas algo bem disposto". E colocar nomes de figuras públicas era obrigatório. "Faz parte da cultura pop. Em Portugal não é habitual. Eu sempre que trabalho em comédia noto como temos cuidado quando referimos este ou aquele nome, e acho isso estranho porque as coisas que gosto ou se fazem lá fora isso não existe. Às vezes até vão longe demais. Vejam só o 'Family Guy'! Não tem filtros. E eu queria escrever os diálogos, a partes das referências como se fosse uma conversa de café… porque nós, no nosso dia a dia, descrevemos isto ou aquilo referindo-nos a esta pessoa, ou esta publicidade, seja de maneira séria ou a brincar. E foi o que fizemos. Sem vexar, mas a brincar", diz alertando ainda para outra coisa: "Não queríamos que aquilo fosse algo sobranceiro e intelectual, a gozar com as novelas, mas sim divertido. Pelos vistos conseguimos".
FAMOSOS EM DELÍRIO
Apesar disso não faltam celebridades que apenas fizeram pequenas participações como Bárbara Branco, José Condessa, João Catarré, Carolina Deslandes, Cuca Roseta... sempre acompanhados do tema: 'Pôr do Sol', que se repete vezes e vezes sem conta apesar da letra se resumir ao título...
Mas não foi nada fácil escrever neste tom, assume o guionista. "Foi um gozo tremendo fazer aquilo mas não foi fácil porque insisti com a produção não fazer muitas páginas por dia. Para termos aquele número certo de piadas, não dava para estar a fazer um episódio por dia. Lá conseguimos. E acabou por ser um gozo. Eu ria-me a escrever algumas coisas".
Apesar de terem adorado trabalhar no texto por ser totalmente diferente de tudo o que existia em televisão, Henrique Dias, Manuel Pureza e Rui Melo não esperavam a euforia que invadiu as redes sociais desde a estreia de 'Pôr do Sol'. A "novela" já tem 'memes' dos diálogos, é alvo de piadas na rua e, de um momento para o outro, tornou-se um êxito na RTP Play, onde se pode ver o episódio do dia mais cedo (perto do meio dia). "Apanhou-nos a todos desprevenidos. Não esperávamos este sucesso. Ainda bem. Ficámos super felizes".
E, já agora, os números: apesar da estação, em tom de brincadeira garantir que são os vencedores do horário nobre, isso não acontece. "É mais uma forma de brincar", diz José Fragoso diretor de programas da RTP. Mesmo assim os números estão longe de serem maus... até porque a RTP Play tem visto as audiências aumentarem de dia para dia. "Vamos ver no que se traduz depois nos números finais. O que podemos dizer é que o que as outras séries fazem ao longo de seis meses esta fez num dia. Acho que isso demonstra o sucesso que está a ter", diz José Fragoso.