
Olá Pai,
Um destes dias, pai, veio ter comigo um senhor – homem para a sua idade – que me abraçou emocionado a perguntar por si. Eu respondi que o pai estava um belo rapaz, com saúde, que o coração tinha seguido a vida dele sem chatear mais, depois de lhe termos dado o que ele queria: um bypass bem feitinho, menos chatices e preocupações, umas boas caminhadas, uns tintos pelo meio e um cardio-desfibrilhador para o bicho se distrair quando o Sporting perde. Mandou-lhe muitos cumprimentos e, antes de se despedir, disse que nunca tinha esquecido aquele momento, em Lourenço Marques. Ele acabava de chegar à guerra.
O pai ia embarcar no mesmo navio para a metrópole. Para outras guerras. Ainda deu tempo para lhe mostrar uma fotografia a preto-e-branco que guardava no bolso da camisa. "Vou ter com ele. É o meu filho. Não o vejo há 2 anos". Adeus, amigo, o abraço está dado.
Lembra-se de ter chegado ao Cais de Alcântara e de dar comigo um homem feito? Imagino a sua cara quando, do alto dos meus 4 anos, lhe perguntei se vinha da guerra do Ultramar ou da guerra do Vietname!
E nessa altura eu ainda nem apresentava o Quem quer ser Milionário?
Lembra-se pai da primeira vez que conduzi aquela sua mota que parecia um triciclo? Eu quase não chegava com os pés aos pedais. Nem nunca tinha conduzido nada, que quem anda na Primária é sempre conduzido. Mas já o tinha visto tantas vezes, de bigode farfalhudo, a mexer naqueles botões, carregar na embraiagem e meter a primeira que tinha a certeza que ia conseguir. E consegui. O pior foi deixá-la no mesmo sítio, para o pai não me ralhar! Deu por ela, ou não deu por nada?
Quero agradecer-lhe, pai, por não me ter obrigado a ir trabalhar mais vezes consigo. Eu não gostava nada de carregar a caixa da ferramenta, pesada como chumbo. E a tarracha que pesava uma tonelada. Logo eu, que estava habituado só ao peso dos livros. Apesar de gostar das correntes de ar das casas sem portas nem janelas, nem tecto, nem chão; apesar de gostar do cheiro do cimento fresco a 'puxar', nunca seria um grande (en)canalizador. Vá, dê lá o braço a torcer!
Na verdade, pai, tenho mesmo de lhe agradecer por nunca me ter obrigado a ser nada que eu não quisesse. Isso é notável! E olhe que, naquele tempo, a autoridade dos pais, em geral, era muito mais autoritária do que a autoridade dos pais de hoje, em particular. Veja, até nestes jogos de palavras, nestas pantominices da fala, somos parecidos. Já para não falar que os dois fazemos sempre batota às cartas. Espero que os amigos com quem o pai passa longas tardes a jogar, não leiam isto. Longe de mim descobrir-lhe a careca. Alto e pára o baile! Careca não! Que o pai tem um cabelo branco, lindo e robusto. Como eu tenho, como eu vou ter.
Neste 53 anos, ouvi muitas vezes a mãe – já sabe como é a mãe – dizer "tens mesmo a quem sair! És igualzinho ao teu pai!". Confesso que tempos houve, e o pai sabe como a adolescência é tramada, que eu não gostava nada que a mãe dissesse aquilo. Irritava-me. Mas, como sempre, tinha razão. Somos parecidos em muitas coisas. Nas boas e nas más e isso não é nada mau.
Vem aí o Dia do Pai. Para além do perfume que lhe ofereço todos os anos e que o pai "derrete" em duas semanas (a mãe é que diz), este ano quero agradecer-lhe e expressar-lhe o meu amor por mais um motivo. Pelo facto do pai ter aprendido a gostar dos meus filhos. Eu sei que eles são chatos, que querem sentar-se no seu cadeirão, que largam muito pêlo, que puxam muito a trela quando vai passear com eles, que tem de se baixar para apanhar o cocó com o saco, mas são os meus filhos e gostam muito de si. Não sabe a felicidade que sinto quando ouço o pai dizer "venham cá ao avô!"
Nunca lhe escrevi um aerograma. Acho até que nunca lhe escrevi uma carta. Há sempre uma primeira vez para tudo. Agora vou comprar o perfume.
Gosto tanto de o ver bonito e bem cheiroso!