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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Outra vez

Tenho saudades tuas, ou saudades de tudo o que fomos, não sei bem, já é tão difícil não misturar o passado com o presente e destrinçar a realidade da ficção que demoro algum tempo a sair da cama, só abandono o estado de sonho lúcido quando sinto força suficiente nas pernas para pisar firme o chão que me leva de volta ao mundo.
02 de fevereiro de 2018 às 07:00
barco, naufragado, praia, tempestade
barco, naufragado, praia, tempestade

Onde anda o teu coração, é a pergunta que faço ao meu, a cada manhã que o fim da noite anuncia. Acordo com o corpo quente, as mãos inquietas, o peito cheio e a cabeça à roda. Tenho saudades tuas, ou saudades de tudo o que fomos, não sei bem, já é tão difícil não misturar o passado com o presente e destrinçar a realidade da ficção que demoro algum tempo a sair da cama, só abandono o estado de sonho lúcido quando sinto força suficiente nas pernas para pisar firme o chão que me leva de volta ao mundo.

O meu quarto é uma teia gigante, memórias como fios de seda tecem as noites nos sonhos em que te vejo. Às vezes fazemos amor, outras vezes nem me vês, passas ao longe sem olhar para trás, num cenário complexo que combina casas e lugares que nos são familiares. Quase nunca estamos sozinhos, temos multidões que nos cercam, mas sinto-me sempre só nesses sonhos erráticos e inúteis. Só servem para me lembrar que o meu cérebro é um território desconhecido e selvagem, impossível de dominar. O planeta foi muito mais fácil de conquistar do que qualquer mente pensante e insatisfeita, como a tua, ou a minha.

Separados no tempo e no espaço, ouvimos as mesmas músicas, apaixonamo-nos pelos mesmos livros e lutamos pelas mesmas causas. Nunca conheci ninguém tão parecido comigo naquilo que é mais engraçado e tão complementar naquilo que é mais importante. O que tenho em otimismo falta-me em ponderação, o que tens em racionalidade, falta-te em rasgo. Em tudo o que arrisco, tu recuas. Não é um problema, é uma bênção, como é uma bênção o entendimento feito de poucas palavras e de muito riso, da pele com pele, dos nervos a vibrar em stereo como uma aparelhagem de alta-fidelidade, com todos os graves, médios e agudos equilibrados. Conseguimos ouvir todos os sons um do outro, sobretudo quando estamos em silêncio, qual o valor de tanta beleza? Incalculável.

Por tudo isto, não quero abrir-te a porta. Não quero porque não posso. O meu corpo pede, mas o meu coração não aguenta. Não aguenta as ausências prolongadas, o vazio do dia seguinte, o regresso à vida sem ti. Não penses que não ardo em desejo, são dez triliões de células ligadas a ti há tanos meses que nem os posso contar porque se transformaram em anos, de tal maneira que a memória da minha vida antes de ti foi ficando cada vez mais ténue, como um filme antigo que perde nitidez, cuja fita se parte e tem de voltar a ser colada com fita-cola.

Sinto-me o Charlot a comprar violetas para e menina cega, a ser alimentado por uma máquina de refeições, a entrar na jaula do leão sem saber onde se meteu. Tudo se desenrola a uma velocidade irreal, falta-me o bigode, o chapéu de coco e andar com os pés para fora, mas a desorientação constante está lá, a baralhar ainda mais o que resta do meu passado.

O que será de mim, se voltares outra vez para me desorganizar os dias e me roubar o sono e coração? O que será dos meus dias se voltarem a ser atravessados pelo tsunami da loucura, pelo desejo que cega, pelas horas sem minutos nem segundos? Quando é que uma bênção se transforma numa maldição? Nós fomos um casal feliz, na verdade fomos apenas um sonho de casal, num tempo em que tudo era belo, puro, elevado, carregado de esperança e de luz, um mundo que tínhamos ao nosso alcance, um futuro que não conseguimos desenhar nem agarrar. Como é que saímos desse lugar encantado para aquele em que chegámos, um barco naufragado por desgovernos e tempestades, a sensação de sobreviver à rebentação, a chegada a uma praia de piratas, a sede misturada com o cansaço, um deserto dentro da alma com o medo sempre à espreita?

É o que acontece quando desces de uma nuvem por uma escada que se parte. Passo a passo vais calculando a descida, mas há um momento em que os degraus cedem em dominó, escapa-te um pé e nunca mais páras de cair.

É o que mais temo se te abrir outra vez a porta. Outra vez a vertigem, outra vez o sonho, outra vez o prazer sublime, outra vez o mundo inteiro dentro de nós.  

O meu coração não aguenta tudo outra vez, desculpa.

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