
Cá em casa damos nomes aos eletrodomésticos. Tudo começou quando, depois de quase três anos sem forno, por causa da pandemia e por causa dos dotes culinários do Zé me decidi a comprar um forno da marca Meireles. Robusto e analógico, sem luzinhas nem enfeites, três botões, um para contar minutos, o outro para escolher as opções e o terceiro para regular a temperatura.
- Meireles é nome de funcionário público - , comentou o Zé enquanto retirava o salmão do tempero para lhe dar uma entalada. Tinha-o temperado de manhã, só com umas laranjas esborrachadas, e depois reservado, que é aquele termo da culinária quando se deixa um alimento de lado até à hora de ir para o seu destino fatal, frigideira neste caso.
- Então se o forno tem nome, o que fazer com os outros eletrodomésticos da cozinha? – perguntei eu, enquanto cortava batatinhas nova ao meio, as temperava com azeite, manteiga, flor de sal e orégãos, tarefa de grau de dificuldade zero nas artes da culinária.
- É tratar todos por igual, para não se sentirem negligenciados- respondeu o Zé que tem sempre resposta para tudo, quase sempre com muita graça.
E foi assim que o frigorifico passou a ser o Pacheco, o micro-ondas o Fonseca, a máquina de lavar roupa a Adelaide, e a da loiça a menina Isilda. Ainda falta batizar a vassoura, o aspirador e o ferro de engomar.
É impressionante como a vida muda quase de um dia para o outro. Com a pandemia, descobri que sei arrumar gavetas como se trabalhasse numa loja de lingerie, que engomo camisas enquanto o diabo esfrega o olho e que, graças ao Meireles, faço uns bolos de lamber os dedos e de chorar por mais. Estar fechada em casa não me custa, o que me custa é não ver o meu filho e os meus pais, as minhas sobrinhas e os meus irmãos, as minha amigas e amigos. O que me custa é ver que morrerem todos os dias milhares de pessoas no mundo.
Na verdade, o que me custa ainda mais, é não acreditar que, quando a pandemia passar, as pessoas não vão mudar. Agora acreditam que sim, estão paralisadas pelo medo e pelas circunstâncias, fazem planos ambiciosos para se tornarem em pessoas melhores e até acreditam neles, mas são apenas boas intenções, porque as pessoas não mudam. Eu que o diga, que acordo feliz dia sim dia não, e o Zé, que me conhece bem, sabe que um dia menos feliz acaba quando adormeço, no dia seguinte já fui a zeros e acordo animada, cheia de planos possíveis para aguentar a armadilha doméstica cultivando o charme do quotidiano.
A realidade mudou e com ela as minhas ambições também mudaram. Dantes, sonhava com férias em Ibiza, agora perco-me em delírios de desejo por uma batedeira porque a minha avariou e não tenho força de braços para bater as claras em castelo até ficarem naquele ponto em que não caem da taça mesmo que a vire de pernas para o ar durante vinte segundos.
E a vida vai seguindo sem sair do mesmo lugar, a Adelaide dá voltas ao seu tambor, enquanto a menina Isilda trabalha pelo menos uma vez por dia, o Fonseca qualquer dia rebenta com tanto uso ainda não demos nomes à vassoura, ao aspirador e ao ferro de engomar.
Quando a quarentena enfim terminar e os nossos amigos nos vierem visitar, já estou a imaginar a cena, tudo na cozinha à conversa e eu digo:
- Ó Zé, vai ali ao Pacheco buscar os bifes, mete o arroz a aquecer no Fonseca, enquanto o despejo a menina Isilda.
Os nossos amigos vão pensar que enlouquecemos, mas nunca estivemos tão lúcidos. Só me falta mesmo uma batedeira para ter claras em castelo sem grande cansaço e fazer bolo de laranja, bolos de cenoura, bolo de chocolate. Tudo com muita alegria e amor, que é para isso que cá andamos.