
Duas vezes por dia soa o toque da alvorada. O quartel é lá em baixo, está sempre com os portões fechados, nunca vi ninguém passar aquela fronteira, por isso nunca me lembraria que existisse se não fosse o toque bi-diário, o primeiro que me faz levantar cada manhã para me sentar a escrever, e o segundo para me lembrar que já passou mais um dia.
Existe qualquer coisa de mágico nos sons ritualizados das nossas vidas: o choro dos nossos filhos, o ranger da porta cujas dobradiças chiam por umas gotas de óleo, os passos de quem amamos pela casa, o ritmo com que sobem e descem as escadas, e o mais belo som do mundo, que para mim é a palavra Mãe.
É engraçado como as palavras mais belas e mais importantes têm três, quatro ou cinco letras. Mãe, pai, avô, avó, tio, tia, filho, paz, saúde, sonho, amor, fado. Beijo, abraço, toque, sim, não, já, agora, calma, vem, fica, ainda, bom, mau, frio, quente, mãos, braços, boca, peito, voz, alma, medo, raiva, zanga, amigo, colo, cama, mimo, paixão, hoje, ontem, amanhã. Cinco letras e está lá tudo, ou quase. Quase também conta. E falta. Faltam as outras palavras importantes, talvez por serem mais compridas, sejam mais difíceis, mais complexas, ou apenas mais traiçoeiras: desejo, futuro, esquecimento, pressentimento, relacionamento, casamento, divórcio, mentira, omissão, desastre, cataclismo, pandemia, empréstimo, cobrança, fatura, amargura, compromisso, entrega, saudade. Prefiro as palavras com poucas letras, pronunciadas na magia do imediato que cabe em apenas uma ou duas sílabas. Como chuva, vento, dia, noite, sol, lua, nuvem, bênção, santo e afinal.
Afinal a vida é sempre outra coisa, digo-o e escrevo-o tantas vezes, por causa de tudo e sobretudo por causa do novo inimigo que a Humanidade enfrenta, aquele que pode chegar a todos, que tanto nem se sente como mata, que nos faz andar de máscara e de luvas, que nos impede de abraçar quem mais amamos e de sermos livres. Outra palavra difícil, complexa ou apenas traiçoeira, liberdade. Ou verdade. Ou ainda amizade. Diz uma sábia amiga de longa data que ao longo da vida são mais os amigos que se perdem do que aqueles que guardam, uma conta aparentemente absurda, mas infelizmente real, e eu acho que ela está certa. Mas não faz mal. Não faz mal, porque mesmo que o monstro pandémico nos prenda os movimentos e nos afaste daqueles que amamos, existe a crença, mais uma palavra com cinco letra apenas, que nos faz vencer o terror e passar o portão para aquele abraço que tanta falta nos faz.
A cada manhã, imagino que o toque da alvorada simboliza um abraço, cada dia penso em alguém diferente que o merece, fecho os olhos e faço do meu sonho realidade. Talvez precise de novos sonhos, se calhar precisamos todos. Já tenho a minha lista, e quem me lê, será que irá fazer a sua quando terminar de me ler? Espero que sim, porque sem sonhos somos apenas autómatos esvaziados pela realidade. O sonho comanda a vida e mesmo enquanto o mundo não avança lá fora, podemos sempre encontrar caminhos cá dentro para ir chegando ao nosso destino, que em cinco letras apenas, se chama sorte.