
Dez anos depois, não há praticamente nada que esteja no mesmo lugar para os Espírito Santo. O mês de agosto de 2014 marcaria um antes e um depois na vida como Ricardo Salgado e a família a conheciam porque, com a queda do BES, cairiam todos. Dos tempos faustosos, pouco sobra. O património foi sendo alienado, as mansões que em tempos eram palco de grandes festas já só contam histórias do passado e os filhos do famoso banqueiro, antigo 'dono disto tudo', espalharam-se pelo mundo, os amigos, a maioria, atravessa agora a rua à sua passagem.
Começa esta terça-feira, dia 14 de outubro, o mega processo que envolve a investigação em torno do colapso de um dos maiores bancos portugueses. Quando se diz que a Justiça é morosa, aqui provavelmente a expressão eleva-se a um novo patamar. Passaram-se dez anos, mais de 3600 dias e há agora em cima da mesa 215 volumes, num total de mais de quatro mil páginas de acusação para analisar em tribunal, num processo com 18 arguidos, mas que se perguntarmos à maioria dos portugueses dificilmente conseguirá nomear mais do que um: Ricardo Salgado.
Ele era, é, o rosto do Banco Espírito Santo, escrevendo, na primeira pessoa, a história da sua ascensão e queda. Um dos homens mais poderosos de Portugal, movia-se entre os círculos mais influentes e tinha um status quo a que se aspirava, mas poucos conseguiam ter. Era a imagem da riqueza e do sucesso, bafejado por uma família de sonho a acompanhar o cardápio: Maria João, a bonita mulher, companheira de todas as horas, a mais elegante de qualquer festa, os três filhos a continuidade da linhagem, as cabeças genais, o império assegurado, a fortuna a multiplicar-se com os respetivos casamentos, em que há fronteiras bem definidas para o amor.
Se perguntassem a uma das secretárias de Salgado, à época, se era possível agendar uma reunião, um apontamento ou um almoço com o banqueiro, provavelmente este teria de ser chutado para dali a uns meses, a agenda medida a régua e esquadro, o telemóvel num retinir contínuo. Parece incrível que hoje aconteça exatamente o mesmo no sentido diametralmente oposto: a agenda está em branco, à espera que os dias, que custam a passar, sejam preenchidos numa realidade que todos aqueles que conheceram os Espírito Santo julgariam nunca ser possível, uma piada de mau gosto.
Em 2015, apenas um ano depois da queda do BES, a mudança já era impressionante. Na altura a revista 'Visão' fez uma reportagem em que dava conta que a famosa capela da família, na imponente mansão de Cascais, e que chegou a ter uma generosa fila à entrada, estava às moscas. Ricardo Salgado passou a entrar mudo na missa e a sair calado, e nessa altura já poucos eram aqueles que lhe estendiam a mão para o cumprimentar, como se o facto de ter caído em desgraça fosse contagioso, se se respirasse o mesmo ar. "À porta, a falarmos depois da missa, já não é a mesma coisa. As pessoas estão encolhidas. Agora, os silêncios e os olhares falam mais do que as palavras. A maneira como as pessoas o observam, o olham, já não é a mesma", disse na ocasião o capelão Avelino Alves, eterno amigo da família, não deixando de ter uma palavra elogiosa para com Ricardo Salgado.
"Apesar de se sentir tantas vezes sozinho, isolado de tudo e todos, é um grande homem. Digo-lho, sempre que posso, no fim da missa. Os grandes homens veem-se nas adversidades, nas lágrimas, na dor."
Ainda que desse homem já pouco restará. Um dos pontos em cima da mesa antes do início do julgamento era precisamente se haveria condições de sentar Ricardo Salgado no banco dos réus, por culpa da doença de Alzheimer, no entanto a Defesa viu as pretensões negadas pelo coletivo de juízes.
A doença já foi atestada por vários médicos e também pela mulher, outrora parceira das festas mais glamorosas, agora enfermeira de todas as horas. Em tribunal, Maria João, que sempre foi avessa ao mediatismo e nunca deu entrevistas, viu-se forçada a contar tudo, ao mais ínfimo detalhe para justificar o estado clínico do marido.
"Está doente, a doença infelizmente tem progredido. O Ricardo tem dificuldade em fazer tudo sozinho... Eu tenho de estar com ele para ele ir à casa de banho. Durmo com ele e tenho de estar com atenção porque ele levanta-se de noite e não acende a luz. Custa-me dizer isto do meu marido, mas ele não tem independência nenhuma hoje em dia", disse Maria João Salgado, continuando: "Já se tem perdido em casa".
"Ele diz-me que tem sido a mulher, e Deus, o seu pilar. É uma mulher que não aparenta, mas é batalhadora. Ele é um homem com muita capacidade, muito inteligente, mas não resistia se não fosse a mulher."
OS FILHOS... QUE FIZERAM AS MALAS
Ricardo Salgado e Maria João tiveram três filhos e se Catarina há muito que emigrou, por culpa do casamento com o milionário Philippe Amon, que vive num castelo na Suíça, o primogénito, Ricardo, só deixou o país depois de a família ter sido atingida por estilhaços do caso BES. Mudava-se então com a mulher, Rita Sousa Tavares, e os filhos para Toronto, no Canadá, integrando o projeto industrial do Grupo Violas SGPS - que detém a Unicer, os casinos e hotéis Solverde e a têxtil Cotesi. A mudança terá sido uma forma de fugir à forte pressão a que toda a família estava sujeita depois do escândalo em torno do Banco Espírito Santo.
"Não quer estar aqui. Sente-se desconfortável a falar com as pessoas depois de tudo o que se passou", disse à 'Sábado' uma fonte na altura.
O casal é ainda pai de José Bastos Salgado - que, à semelhança dos irmãos, estudou Economia e chegou a trabalhar com o pai - casado com Teresa Costa Salgado que, na sua conta de Instagram, mostra o lifestyle da família, entre Lisboa e vários pontos da Europa.
Apesar de não estarem fisicamente junto dos pais na maior parte do tempo, a ajuda dos filhos é essencial para que os Salgado consigam manter um estilo de vida próximo daquilo a que estavam habituados, com Maria João a ver-se obrigada a explicar perante a Justiça a logística dos gastos familiares.
"A esposa do arguido refere que os encargos fixos mensais relativos às despesas pessoais e de saúde e de manutenção dos imóveis e viaturas são no montante aproximado de 40 mil euros. As pensões de reforma do casal são insuficientes para colmatar os referidos encargos, pelo que os mesmos são assegurados essencialmente por uma doação de 40 mil euros que a filha do casal faz mensalmente à mãe para a gestão da economia familiar", constava da informação judicial.
É quase como dizer que se vão os anéis (não todos, claro) e ficam os dedos, numa realidade que cedo, após o colapso do BES, Ricardo Salgado percebeu que passaria a ser a sua. Na sua agenda pessoal, entretanto divulgada pelo 'Expresso', escreveu por essa altura de 2014 uma célebre mensagem do Papa Francisco, que terá passado a repetir como uma espécie de mantra.
"Não chores pelo que perdeste, luta pelo que tens. Não chores pelos que te abandonaram e luta pelos que estão contigo".
Talvez esta terça-feira, data em que se inicia o julgamento, se possa começar a perceber quem ainda são essas pessoas.