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Birras e glamour. Cannes voltou recheado de polémicas: do amor ao TikTok ao boicote à Netflix, o que se passa com o festival de cinema mais famoso do mundo?

Acha que é só brilho e beldades na passadeira vermelha, e talento nas salas? Longe disso! Cannes regressa a sério dois anos depois com preconceitos e verdadeiras surpresas. Saiba o que mudou (ou não) na grande competição de cinema europeia.
Afonso Coelho
Afonso Coelho
21 de abril de 2022 às 22:38
Festival de Cinema de Cannes - passadeira vermelha
Festival de Cinema de Cannes - passadeira vermelha Foto: getty images

O Festival de Cannes tornou-se a expressão máxima dos festivais de cinema no mundo. Teve a sua primeira edição em 1946, mas fora idealizado uma década antes para combater a interferência política que assombrava o pioneiro Festival de Veneza, por parte dos regimes aliados de Benito Mussolini e Adolf Hitler.

Desde então, a cidade localizada na Riviera, no sudeste de França, recebe todos os anos um ror de adeptos da Sétima Arte, tal como os seus incontornáveis intérpretes, no Palais des Festivals et des Congrès, que substituiu o original, criado para o efeito em 1949. A expressão "anualmente", assinale-se, exige algumas exceções, dado que houve anos em que não se realizou: primeiro em 1948 e 1950, por questões administrativas, e depois em 2020, quando foi cancelado por força do cenário pandémico que atormentou o mundo nos últimos dois anos. Assim, em 2022, o Festival de Cannes irá regressar a 100% entre os dias 17 e 28 de maio para uma emblemática 75ª edição, depois de, em 2021, ter estado limitada com várias particularidades, fruto da situação sanitária que subsistia.

Cannes
Cannes Foto: Getty Images

Como é habitual, a seleção de filmes divide-se principalmente entre os candidatos ao mais ambicionado prémio da cerimónia, a Palma de Ouro, e uma outra categoria, 'Un Certain Regard', que destaca obras com estilos e guiões de menor ortodoxia. Existem também sessões de filmes fora da competição e secções paralelas como a Quinzena dos Realizadores e a Semana da Crítica, que este ano assumem especial importância para o cinema português. 

Aquele que é provavelmente o mais prestigioso e glamouroso festival internacional de cinema tem estado a tentar passar, nos últimos tempos, uma imagem de renovação, sem deixar para trás o selo de farol da Sétima Arte que vem carregando desde há décadas. Este é, de forma inversa, um fardo que traz consigo uma espécie de conservadorismo latente, quer na dimensão artística, quer na dimensão social.

O VIRAR DA PÁGINA

Na sua crónica da edição de 2021 para o ‘The Guardian’, Peter Bradshaw listou as principais diferenças daquela para as edições anteriores. Entre elas, para além do uso de máscara, da diminuição das festas e dos cumprimentos com o cotovelo, estes últimos que já aparentam pertencer a uma realidade assaz distante, estavam também as idas obrigatórias a uma tenda para que todos os presentes se pudessem submeter a testes à covid-19 a cada 48 horas, assim como o fim dos bilhetes impressos e as leituras de códigos QR às entradas das sessões.

Desconhecendo-se ainda como serão as regras na versão de 2022, é possível deduzir que, pelo menos, serão aliviadas comparativamente ao festival transato. No site oficial do festival, encontra-se uma secção dedicada à "obediência às medidas sanitárias", no qual surge a recomendação de máscaras dentro do espaço, tal como um laboratório de testes de antigénio e PCR a 5 minutos do Palais des Festivals et des Congrès. Contudo, denota-se também que as mudanças nas leis sanitárias europeias trarão de maneira idêntica esse atenuamento, por, até à data, não serem mandatórios os certificados de vacinação para aceder a eventos culturais.

Festival de Cinema de Cannes
Festival de Cinema de Cannes Foto: Getty Images

Na dimensão cinematográfica em si, uma novidade em relação à edição precedente prende-se com o número de filmes em exibição. As 24 longas-metragens que competiam para a Palma de Ouro no ano anterior transformaram-se em 18 para este ano. No geral, houve um recorde de 150 filmes programados em Cannes, em 2021, mas como já havia sido antevisto pelo delegado-geral do festival, Thierry Frémaux, esta quantidade decresceu para a edição atual: "Vai haver menos filmes em 2022, é o que espero. A maldição do programador é a abundância, mas a obsessão do organizador é a frugalidade. Em 2021, fizemos um esforço para convidar um maior número de filmes, a crise sanitária exigia-o: era necessário sermos mais abertos e generosos. Este ano, podemos voltar a um formato normal", referiu no início do mês à ‘Variety.’

NETFLIX DE VOLTA A CANNES? AINDA NÃO

O que ainda não mudou, contudo, foi a questão do streaming, não obstante a maior adesão a estas plataformas por parte de cineastas de renome – como no ano transato sucedera com Jane Campion, com o seu aclamado ‘O Poder do Cão’, distribuído pela Netflix, que perderia nos Óscares a estatueta de Melhor Filme para outro produto do streaming, ‘CODA – No Ritmo do Coração’, de Sian Heder, da Apple TV+ – e o histórico acordo entre a Netflix e as instituições do cinema francês - a plataforma concordou em investir 4% da sua receita em França no financiamento de filmes franceses, com a imprensa especializada a rumorar que tal poderia ter conduzido ao reencontro entre a plataforma e Cannes.

Benedict Cumberbatch, O Poder do Cão
Benedict Cumberbatch, O Poder do Cão Foto: Netflix

A problemática em questão nasceu em 2017, quando as regras relativas ao envio de filmes para as categorias competitivas começaram a ditar que seria obrigatório um filme ter estreia agendada nas salas de cinema francesas para poder competir em Cannes. Simultaneamente, as regras do país exigem uma espera de 15 meses desde a estreia no grande ecrã até uma obra poder ser adicionada aos catálogos de streaming, com a mistura de ambas estas circunstâncias a desagradar aos responsáveis da plataforma.

Frémaux já terá, de acordo com a ‘Variety’, voltado a tentar chegar a um compromisso com a Netflix para regressar a Cannes (antes da alteração das regras, a famosa plataforma teve filmes na edição de 2017 do festival), fora do rol de filmes em competição, mas facto é que este ano tal não se materializou. O Festival de Veneza, por exemplo, não está limitado por estas restrições e já recebeu filmes distribuídos pela Netflix, como são exemplos o supramencionado ‘O Poder do Cão’ ou ‘A Mão de Deus’, de Paolo Sorrentino.

A "modernização" chegou de certa forma nesta edição por um caminho bem mais improvável: a organização do festival anunciou uma parceria oficial com a conhecida rede social TikTok, que incluiu a constituição de uma nova competição, referente às curtas-metragens em formato vertical, que devem ter entre 30 segundos e 3 minutos de duração. "Estamos entusiasmados por poder partilhar a magia do festival com um público maior, muito mais global, mas não menos cinéfilo. Com esta colaboração, que se prende com um desejo de diversificar o nosso público, estamos ansiosos por difundir os momentos mais inspiradores do festival e de o ver imaginado de uma forma renovada pelas lentes dos criadores de TikTok e da comunidade", referiu Frémaux, aquando do anúncio.

@festivaldecannes Bienvenue sur notre compte TikTok officiel ! Welcome to our official TikTok ! #Cannes2022 #festivaldecannes #filmtiktok #TikTokAcademie #CultureTikTok #cinema ? son original - FestivaldeCannes

A PRIMEIRA PRESIDENTE

Para além da 75ª edição do festival, 2022 foi de forma idêntica histórica para Cannes: Iris Knobloch foi eleita presidente do festival, sucedendo a Pierre Lescure, sendo a primeira mulher de sempre a ocupar esta posição. "Sinto-me profundamente honrada por a França me ter elegido como presidente do Festival de Cannes. (…) Um filme visto numa sala de cinema permanece uma expressão artística incontornável e é isso que Cannes demonstra, através da sua seleção ímpar, todos os anos. Mal posso esperar para continuar o trabalho que foi alcançado até agora e por planear a história futura do festival, à luz dos desafios que se aproximam", afirmou Knobloch, em declarações ao site oficial do evento.

Iris Knobloch
Iris Knobloch Foto: Getty Images

O percurso da alemã inclui 15 anos ao comando da secção francesa da Warner Bros, posto que deixou para fundar, em conjunto com a família Pinault (à qual pertence, por exemplo, a atriz Salma Hayek), a I2PO, uma Sociedade de Propósito Específico – isto é, uma empresa cotada em bolsa que existe com o intuito de comprar ou fundir-se com outra empresa, neste caso a plataforma de streaming áudio, Deezer, num acordo que terá sido assinado durante esta semana.

A eleição, feita através de voto secreto pelo conselho de administração do festival, de Knobloch foi, todavia, contestada por indivíduos ligados à indústria cinematográfica francesa que consideraram que o facto de a I2PO operar na área do entretenimento poderia levar a conflitos de interesse, criticando a falta de transparência no processo, segundo adiantou a ‘Hollywood Reporter’ em março. De acordo com a ‘RFI’, a I2PO está, por isso, impedida de investir na indústria cinematográfica enquanto Knobloch for presidente do festival.

A (DES)IGUALDADE DE GÉNERO

Embora haja efetivamente uma primeira presidente mulher, a igualdade de género em Cannes permanece um motivo de debate entre os cinéfilos, devido ao desequilíbrio entre homens e mulheres representados no lote de filmes selecionados, num assunto que ganhou outras proporções depois das revelações sobre os crimes de índole sexual perpetrados por Harvey Weinstein, que durante largos anos foi presença regular em Cannes, e do consequente movimento '#MeToo.'

Em 2018, um artigo no 'The Guardian' confrontava duas perspetivas distintas para justificar o desnível entre géneros no leque de filmes em Cannes: a jornalista Agnès Poirier assegurava que o problema se situava a montante, isto é, a própria cultura cinematográfica criava obstáculos de difícil contorno para as mulheres que aspiravam alcançar o sucesso na indústria, enquanto Corinna Antrobus, fundadora do Bechdel Test Fest, festival de cinema fundado com o intuito de relevar obras gizadas no feminino, discordou desse ângulo e apontou o dedo ao próprio festival por não utilizar a sua influência para ajudar à mudança de paradigma.

Apesar de o festival ter, há quatro anos, assegurado que iria fazer alterações para abordar esta problemática, apenas 3 dos 18 filmes em competição para a Palma de Ouro em 2022 são realizados por mulheres, depois de, em 2021, terem sido 4 em 21, incluindo o vencedor ‘Titane’, de Julia Ducournau, que se tornou apenas na segunda cineasta a vencer o prémio mais prestigioso do festival, depois de Jane Campion, em 1993, que triunfou ex aequo com ‘Adeus, Minha Concubina’, do chinês Chen Kaige.

Analogamente, foi exatamente há quatro anos que fez correr tinta a polémica da alegada regra não-oficial que dita que as mulheres devem utilizar saltos altos para pisar o tapete vermelho de Cannes, norma que foi memoravelmente protestada por Kristen Stewart em 2018, ao remover os seus Louboutin durante o percurso até ao seu lugar. A atriz norte-americana já havia avisado, segundo a 'Hollywood Reporter': "Se os homens não são obrigados a usar saltos e um vestido, então também não me podem pedir a mim para o fazer", frisou. 

TOM CRUISE E PORTUGUESES ENTRE OS NOMES DE 2022

No cardápio deste ano, o destaque será a homenagem a Tom Cruise, que incluirá a estreia, ainda que fora de competição, do seu novo filme ‘Top Gun: Maverick’, a sequela ao blockbuster que protagonizou em 1986. Também no rol de filmes que não irão competir por qualquer prémio está ‘Elvis’, de Baz Luhrmann, um musical biográfico sobre Elvis Presley, interpretado por Austin Butler, e com a participação de Tom Hanks na pele do agente do Rei do Rock’n’Roll, Tom Parker.

Tom Cruise, Nicole Kidman, Cannes
Tom Cruise, Nicole Kidman, Cannes Foto: Getty Images

Na competição para a Palma de Ouro, abunda a curiosidade para o novo projeto de David Cronenberg, ‘Crimes of the Future’ – não relacionado com o seu filme homónimo de 1970 – cujo elenco é encabeçado por Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristen Stewart. Em adição, James Gray, realizador de filmes como ‘A Cidade Perdida de Z’ ou ‘Ad Astra’, surge em Cannes com o seu ‘Armageddon Time’, protagonizado por Anne Hathaway, Anthony Hopkins e Jeremy Strong.

O realizador russo Kirill Serebrinnikov, exilado do país devido à sua oposição ao regime de Vladimir Putin, concorrerá com ‘Tchaikovsky’s Wife’, sobre o casamento do icónico compositor com Antonina Miliukova. ‘Close’, do belga Lukas Dhont, ‘RMN’, do romeno Cristian Mungiu, ‘Holy Spider’ do iraniano-dinamarquês Ali Abbasi, ‘Stars at Noon’, da francesa Claire Denis, e, finalmente, ‘Showing Up,’ da norte-americana Kelly Reichardt, são também longas-metragens que angariam bastantes expetativas nos círculos de amantes da Sétima Arte.

Por fim, desengane-se quem pense que o cinema português irá estar ausente da festa: 'Fogo-fátuo', do luso-francês João Paulo Rodrigues, estará presente na Quinzena dos Realizadores, enquanto a longa-metragem 'Alma Viva', da também luso-francesa Cristèle Alves Moreira, e a curta-metragem de animação de João Gonzalez, 'Ice Merchants', poderão ser vistas na Semana da Crítica.

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