
O ar de menina esconde muito saber e um percurso profissional ao lado dos melhores e mais exigentes. Aos 38 anos de idade, a chef Ana Moura acabou de realizar o sonho de sempre: ter um restaurante em nome próprio. O Lamelas fica em Porto Covo, com vista para a baía do porto de pesca. "É uma terra que me faz sentido", justifica. Mas já lá vamos.
Ana Moura começou por estudar Marketing antes de se dedicar à cozinha de corpo e alma. Em 2007, ingressou no curso de cozinha na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Formação feita, era tempo do ritual iniciático. A então jovem cozinheira estagiou no Eleven, em Lisboa, com o chef Joachim Koerper, onde acabou por ficar a trabalhar durante dois anos.
Segue-se a experiência internacional. Ao longo de cinco anos, Ana Moura trabalhou em vários restaurantes em Espanha. Uma aventura que começou em 2010, como responsável pela cozinha do restaurante El Arambol, em Ampudia. Um ano mais tarde, assume a parte de pastelaria do restaurante El Almacen, em Ávila, e começa a trabalhar igualmente com a chef Isidora Beotas. Para além disso, ainda estagiou durante um ano no restaurante Arzak, em San Sebastian, e trabalhou no restaurante Astelena 1997, do chef Ander González, também em San Sebastian, meca da boa gastronomia em terras espanholas.
COZINHA SIMPLES, MAS COM MUITO SABOR
"Nós somos o resultado do que comemos e de onde trabalhamos", avalia Ana Moura. "A evolução não é apenas por trabalhar lá fora. A nossa evolução tem a ver com tudo o que aprendemos, tanto de técnica como de ir a vários restaurantes, provar várias comidas diferentes e vários tipos de cozinha. Ter vivido em Espanha mudou muito a minha cozinha. Tenho alguns pratos em que se notam bases espanholas. Vivi lá cinco anos da minha vida e cresci enquanto cozinheira."
"Ter vivido em Espanha mudou muito a minha cozinha. Tenho alguns pratos em que se notam bases espanholas. Vivi lá cinco anos da minha vida e cresci enquanto cozinheira."
Em 2015 é tempo de regressar a Lisboa. Durante dois anos fica como chef responsável do Cave 23. Seguiu-se o Bacalhoaria Moderna. A pandemia acabaria por obrigar ao encerramento do espaço e abrir uma janela de oportunidade a Ana Moura. Porto Corvo surgiu naturalmente. Apesar de ser natural de Lisboa, Ana Moura sempre passou grande parte dos fins de semana e das férias naquela localidade do litoral alentejano. "O meu avô nasceu aqui e temos cá casa de família, é uma terra que me faz sentido. Vi este espaço por acaso [Lamelas] e gostei muito, com o conceito de cozinha aberta. Foi então que decidi abrir o restaurante aqui", recorda.
Ana Moura define a sua cozinha como de "de base alentejana". "Uma cozinha simples mas com muito sabor", descreve. No Lamelas, são os sabores da região, como a açorda ou as beldroegas mas também o peixe da costa, que a chef vai buscra à lota de Sines, a um par de quilómetros de distância, com pratos como o arroz de peixe e de marisco.
TROCAR A CIDADE GRANDE PELO LITORAL ALENTEJANO
Depois de cinco anos a trabalhar em Espanha e de várias experiências profissionais em Lisboa, a adaptação de Ana Moura a Porto Covo não foi complicada. "No fundo, é mais ou menos a mesma coisa. Num restaurante passamos muito tempo dentro de uma cozinha e acabamos por não ver assim tanto o mundo exterior." A parte mais trabalhosa foi a ligação com os fornecedores. "Em Lisboa há muito mais coisas e é mais fácil ter uma oferta maior de produtos. Aqui temos de nos adaptar aos fornecedores e trabalhar com o produto local, o que acaba por ser bom. Mas foi talvez a parte mais difícil."
"Aqui temos de nos adaptar aos fornecedores e trabalhar com o produto local, o que acaba por ser bom."
A adaptação passou também pela carta: "Se abrisse um restaurante em Lisboa não seria, seguramente, de comida alentejana." Para pensar o Lamelas, Ana Moura olhou à região, ao local e à sala. "Tudo é um percurso e um caminho e, no final, tudo tem de fazer sentido. Aparentemente é muito diferente o tipo de cozinha que fiz num sítio e no outro mas acaba por ser uma evolução até chegar ao ponto pretendido. Passa muito por adaptar ao público que temos, ao que queremos transmitir e ao local", avalia.
E se a pandemia trouxe muitos problemas à restauração, tornou-se igualmente um motor de mudança que, de alguma forma, acabou por ajudar a região. Porto Covo é uma localidade balnear que vive essencialmente do fluxo turístico de verão. Porém, esse paradigma sofreu algumas mudanças com a crise pandémica. "Muitas pessoas foram viver para fora das grandes cidades e o teletrabalho também veio permitir isso. Há muita gente a viver aqui à volta que acaba por ficar o ano inteiro", descreve Ana Moura.
O TESOURO "ESCONDIDO" NA CAVE
No período que viveu em Espanha, Ana Moura fez o curso de somellier, em Ávila. Conhecedora e apaixonada pelo mundo dos vinhos, a chef faz questão de trabalhar com produtores da região e, na cave, guarda um verdadeiro tesouro em néctares, com especial destaque para as aguardentes de medronho, tão características desta zona do Alentejo. Há mesmo o projeto pensado para um 'wine bar' no piso debaixo do restaurante. Enquanto não acontece, o "armazém organizado" – como a chef lhe chama – merece uma visita para aquisição de algumas preciosidades.
Com a proximidade do Natal, era inevitável a preparação de um prato a celebrar a quadra. Bacalhau com grão e couves e uns cubos de pão alentejano salteado (ver receita no final). Sabores, afinal, do Alentejo. E o "fiel amigo", claro. "O bacalhau é dos peixes com maior possibilidade de criar pratos novos. Muda muito o sabor mediante a cozedura. Na Bacalhoaria Moderna jogávamos muito com isso: a mesma peça de bacalhau, se for cozida, confitada ou assada no forno, muda completamente o sabor. É um dos produtos mais versáteis."
"A mesma peça de bacalhau, se for cozida, confitada ou assada no forno, muda completamente o sabor. É um dos produtos mais versáteis."
Na noite de Consoada, Ana Moura delega funções na mãe para tratar da ceia e preparar o tradicional prato de bacalhau. "Faço sempre alguma coisa, mas a parte do bacalhau é a minha mãe que faz. Ela gosta muito de ir à procura do melhor bacalhau possível e preocupa-se em cozinhá-lo bem." Ainda assim, as memórias gastronómicas da chef não são as das tradições familiares – da mãe e das avós, como o ensopado de borrego ou o arroz de polvo da avó materna – mas mais dos restaurantes que desde criança se habituou a frequentar na companhia dos pais. "Gosto muito de ir a restaurantes, de comer fora, em casa de pessoas. As minhas memórias gastronómicas vêm muito mais daí."
A RECEITA
Bacalhau com grão e couves Ingredientes: Grão demolhado 24h Lombo de bacalhau Alho Azeite Couve Cebola Louro Pão alentejano Salsa picada Preparação: Cozer o grão com cebola e louro até estar cozinhado. Confitar os alhos em azeite em lume brando. Triturar parte do grão com os alhos confitados, o azeite e temperar com sal. Cozinhar o bacalhau em azeite a 70.º durante aproximadamente 5 min. Cozer as couves durante 3 minutos em água a ferver com sal, arrefecer em água e gelo e depois no momento saltear em azeite. Para o puré de alho assado, cortar a parte de cima do alho, colocar sal e azeite, fechar com papel de prata e cozinhar a 180.º durante 3 min. Retirar do forno e espremer o alho. Saltear a outra parte do grão em azeite de alho. Saltear cubos de pão alentejano com o azeite dos alhos confitados, temperar de sal e no final juntar a salsa picada.
Ingredientes:
Grão demolhado 24h
Lombo de bacalhau
Alho
Azeite
Couve
Cebola
Louro
Pão alentejano
Salsa picada
Preparação:
Cozer o grão com cebola e louro até estar cozinhado. Confitar os alhos em azeite em lume brando. Triturar parte do grão com os alhos confitados, o azeite e temperar com sal. Cozinhar o bacalhau em azeite a 70.º durante aproximadamente 5 min.
Cozer as couves durante 3 minutos em água a ferver com sal, arrefecer em água e gelo e depois no momento saltear em azeite.
Para o puré de alho assado, cortar a parte de cima do alho, colocar sal e azeite, fechar com papel de prata e cozinhar a 180.º durante 3 min. Retirar do forno e espremer o alho. Saltear a outra parte do grão em azeite de alho. Saltear cubos de pão alentejano com o azeite dos alhos confitados, temperar de sal e no final juntar a salsa picada.