
Carlos Madeira, 57 anos de idade, é chef de cozinha desde "algures" nos idos anos de 1990. Não tem precisão na data. "O que importa é dizer que sou cozinheiro desde 1986." Esse é para si o marco mais importante numa carreira com 35 anos.
Carlos Madeira não encaixa no estereótipo de quem sonha ser chef profissional. "Ninguém na minha família tinha rigorosamente nada a ver com cozinha. Obviamente tenho as memórias da cozinha da minha mãe e das minhas avós, que era com quem estava todas as semanas, mas muito sinceramente não consigo dizer, sem me crescer o nariz, que foi a partir daí que eu desenvolvi toda esta vontade."
Com o fim do liceu e o 12.º ano concluído, Carlos Madeira estava dividido entre duas opções: "ser advogado ou ser cozinheiro". "Coloquei a hipótese de ir para Direito – sempre estive na área de letras. Na altura fui assistir a uns julgamentos no antigo tribunal da Boa Hora e ao fim de três ou quatro julgamentos pensei: isto é uma aldrabice pegada, eu não quero fazer isto na minha vida. Vou então para a outra opção que estava em cima da balança, que era fazer o curso de cozinha."
O FASCÍNIO PELO RIGOR NUMA COZINHA PROFISSIONAL
Formou-se na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Foi o melhor do curso. "Percebi desde a primeira hora que as bases da cozinha são o mais importante." Formação concluída, ruma a Paris, onde esteve a trabalhar durante alguns meses. Regressa a Portugal para trabalhar num restaurante de luxo e por lá permanece durante cinco anos. É então convidado para lecionar na escola onde teve formação – Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Foram 11 anos como formador, ao mesmo tempo que mantinha a atividade profissional.
Nunca perdeu o fascínio pela cozinha. "Ainda hoje me fascina todo o rigor que há numa cozinha profissional, que comparo a uma orquestra. Há um maestro, que é o chef, mas depois todos os instrumentistas têm a sua missão dentro da brigada de cozinha, quase sem falarem uns com os outros. Na altura certa conjuga-se tudo para no momento em que é preciso sair o prato ele estar feito. Ver uma cozinha a funcionar em pleno é uma coisa espetacular. Sempre gostei desse rigor e desse trabalho de equipa."
"Nunca quis trabalhar numa cozinha de hotel ou de restaurante. Foi opção minha fazer a minha vida profissional paralela a essa carreira tradicional de cozinha porque era preciso uma dedicação que não me permitia ter o equilíbrio entre a vida profissional e familiar."
Casado e com três filhos, o chef Carlos Madeira optou desde cedo por gerir a sua carreira de forma a conseguir conciliar o lado profissional com a vida familiar. "Nunca quis trabalhar numa cozinha de hotel ou de restaurante. Foi opção minha fazer a minha vida profissional paralela a essa carreira tradicional de cozinha porque era preciso uma dedicação que não me permitia ter o equilíbrio entre a vida profissional e familiar que todos ambicionamos ter."
A oportunidade surgiu com o convite do grupo Jerónimo Martins, onde está há 20 anos, como chef executivo da Unilever, que lhe permite conciliar o lado de formação com o de cozinheiro. "Consigo ter aqui uma parte de formação a equipas de vendas, de marketing e a equipas internas da própria empresa, e desenvolver e promover workshops e tudo aquilo que é relacionado com comida." A tudo isto junta ainda a presidência da Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal (ACPP). Há tanto tempo que já perdeu a conta aos anos.
"COZINHA É DOMINAR MEIA DÚZIA DE TÉCNICAS. TUDO O RESTO SÃO RECEITAS E INGREDIENTES"
Mas voltando ao início, às bases da cozinha, Carlos Madeira é pragmático na definição da "boa cozinha", afastando-se de conceitos da moda ou campanhas de marketing, sem evitar algumas críticas às tendências atuais do mundo da gastronomia. "No final do dia, a cozinha não é uma coisa complexa. De grosso modo, é o domínio de meia dúzia de técnicas. Cozinhar é cozer, grelhar, saltear, fritar, estufar, guisar. São os métodos tradicionais e mais alguns que a indústria vai introduzindo e que nos fazem evoluir ao longo dos anos. Mas, basicamente, é dominar essas técnicas. Tudo o resto são receitas e ingredientes."
Que é como quem diz, uma vez mais, "dominar as bases". "Se nós soubermos os cortes dos legumes, das batatas, fazer os caldos, os molhos de base e todos os métodos de confeção que referi, sabemos tudo. Para mim, a receita, um prato, é uma mistura de tudo aquilo que nós sabemos quanto técnica, ligado com aquilo que sonhamos, que vemos, lemos, com tudo aquilo que achamos que vai fazer um prato agradável. A visão é importante – tem de ser sugestivo ao olhar – mas 80 por cento disto é sabor. Se eu agarrar num prato que esteja muito bonito mas o sabor não corresponder àquilo que eu idealizei, então é um prato falhado."
"Qualquer pessoa é chef hoje em dia. Mesmo sem curso nenhum, abre um boteco qualquer, é chef e intitula-se um artista da comida. A refeição deixou de ser composta por pratos e aparecem agora os momentos."
E é essa simplicidade que o chef Carlos Madeira procura porque, afinal, cozinhar não é mais do que "técnica e conjugação de sabores". A chamada arte gastronómica não passa, aos olhos do chef, de ser "um pouco romântico e da moda que anda hoje em torno da cozinha". "Qualquer pessoa é chef hoje em dia. Mesmo sem curso nenhum, abre um boteco qualquer, é chef e intitula-se um artista da comida. A refeição deixou de ser composta por pratos e aparecem agora os momentos. Tudo isto é um bocado de marketing e de romantismo à volta desta área e que faz os chefs estarem nas bocas do mundo."
"A arte é uma coisa muito concreta. Este prato não é arte. São técnicas e conjugação de sabores. É a minha interpretação do que fazer com os ingredientes que tinha aqui hoje. Para mim a arte é o domínio das técnicas relacionadas com princípios de nutrição, com a roda dos alimentos, com todas essas misturas de coisas. Se quiserem chamar arte à conjugação de todos estes fatores... Para mim arte está num museu, numa galeria, ou num edifício histórico. É algo duradouro e não efémero como um prato", defende.
"OS PORTUGUESES SÃO AQUELES QUE MELHOR SABEM TRABALHAR O BACALHAU"
Conceitos à parte, a verdade é que a "arte" dos portugueses para trabalhar o bacalhau é inigualável. Carlos Madeira já viajou para muitos pontos do Globo e não tem dúvidas: "Já tive oportunidade de estar na Noruega precisamente num festival de bacalhau, com chefs noruegueses e com colegas portugueses e posso afirmar que os portugueses são aqueles que melhor sabem trabalhar o bacalhau."
O povo português tem uma relação íntima com este peixe que vem das águas frias dos mares do Norte. A história de um e de outro cruza-se desde há muito: desde a arte da pesca, da salga, da conserva, da demolha, de tudo o que está relacionado com essa indústria. Há quem garante que há 365 receitas de bacalhau – uma para cada dia do ano–, e há livros que falam em 1001 receitas de bacalhau. "O bacalhau é um produto de muito boa qualidade e, em todas as viagens que tenho tido, só encontrei bacalhau tão bom como o nosso em países onde existe o mercado da saudade. Por exemplo, no Luxemburgo, onde há uma comunidade portuguesa enorme, ou no Brasil, onde há uma ligação histórica com Portugal e uma comunidade portuguesa também de referência."
"O bacalhau é um produto de muito boa qualidade e, em todas as viagens que tenho tido, só encontrei bacalhau tão bom como o nosso em países onde existe o mercado da saudade."
Para isso, muito contribui o engenho e a sabedoria do povo português para uma das melhores cozinhas do mundo. "Não sendo nós um país mediterrânico, temos o melhor de dois mundos. Apanhamos toda essa influência mediterrânica e temos a inteligência de conjugar todos esses conhecimentos e aproveitar o melhor de cada uma dessas culturas para termos uma das cozinhas mais ricas que já encontrei ao longo da minha vida profissional."
A RECEITA
Cubo de Bacalhau Confitado Servido com à Braz de Legumes e Massa Crocante
Ingredientes:
(Para 4 px.)
400g Lombo de Bacalhau (demolhado)
400g legumes (cebola roxa, alho francês, corgette, cenoura, espargos verdes, cogumelos Paris)
100g batata palha frita
2 unid. Ovos
1 unid. Massa de tortilha ou wrap
q.b sal de bacalhau (retirado do bacalhau seco, antes da demolha)
q.b Oregãos secos
2.5dl Azeite Extra-Virgem
q.b Micro-legumes
3 unid. dentes d’alho
Preparação:
Retirar dos lombos de bacalhau a espinha central, obtendo 4 cubos idênticos. Confitar os cubos de bacalhau em 2dl de azeite e 2 dentes de alho esmagados, a cerca de 100º e durante cerca de 20’. Cortar a massa de wrap em tiras compridas, pincelar com azeite, polvilhar com o sal de bacalhau e orégãos, levando ao forno a secar, 170º cerca de 5’, ou até estar na cor desejada. Cortar todos os legumes em formato juliana, os cogumelos laminados e os espargos em pequenas pontas. Saltear os legumes em azeite e alho picado, juntando a corgette e os cogumelos na fase final. Adicionar a batata palha e envolver tudo. Bater os dois ovos numa taça.
Adicionar os ovos ao preparado dos legumes e da batata, envolver bem, voltando de seguida a colocar na taça onde foram batidos os ovos, para que a humidade destes seja absorvida. Retirar o bacalhau confitado do azeite.
Para servir:
Colocar o à Braz no fundo do prato, sobre este colocar o cubo de bacalhau confitado e em seguida o crocante da massa de wrap, decorando com os micro-legumes. Servir com um fio de azeite do confitado
Nota:
O azeite de confitar o bacalhau pode, e deve, ser utilizado para outras confeções de bacalhau, ou mesmo para repetir o processo de confitar