
Andavam os Xutos no ativo há já oito anos, cientes de que faltava qualquer coisa para os transformar numa banda de multidões, quando, no final de um concerto, no Rock Rendez Vous, o grupo recebeu a visita de Tozé Brito, na altura responsável pela área de Atistas e Repertório da Polygram (hoje Universal). Assinaram contrato e do acordo nasceu ‘Circo de Feras’, um dos mais importantes discos do rock português. 35 anos depois, o grupo celebra-o agora no teatro Tivoli, em Lisboa, com uma série de cinco concertos.
Depois de uma primeira apresentação ontem, Tim, Kalu, Cabeleira e Gui, prosseguem a série de concertos hoje e amanhã (21h30) e sábado em dose dupla (um concerto às 17h00 e outro às 21h30). Prometida está a apresentação do disco na íntegra ("já não o fazíamos há para aí uns 30 anos", diz Tim) e mais "algumas surpresas", garante. Como convidado especial, a fazer a vez de Zé Pedro, está o guitarrista Tó Trips "velho amigo da banda e um dos melhores amigos do Zé que bem conhece estes temas", diz o cantor.
NOTA: Esta entrevista foi publicada originalmente em 2022
Se é verdade que em 1987, os Xutos já levavam dois discos editados (‘78/82’ e ‘Cerco’), não menos verdade é que ‘Circo de Feras’ foi o álbum do tudo ou nada. Foi o primeiro a permitir à banda chegar ao top nacional e aquele que transformou o grupo numa quase força invencível, até aos dias de hoje. "Esse foi o álbum da nossa viragem. Já tínhamos dado um grito de revolta com 'Cerco', mas ninguém nos ligara nenhuma. Acho que aquela era a nossa última tentativa. Era o nosso vai ou racha", lembra Kalu.
Gravado entre Outubro e Dezembro de 1986 e editado em Fevereiro de 1987, 'Circo de Feras' foi também o primeiro disco dos Xutos gravado para uma multinacional. Tozé Brito recorda, como se tivesse sido ontem, o momento em que o grupo assinou o acordo: "Acho que eles tiveram algum receio de que nós, por sermos uma multinacional, os condicionássemos, mas quando fechámos o contrato eu disse-lhe: vocês vão e gravam o que quiserem".
Tozé Brito tinha já tinha ficado impressionado com o que tinha visto e ouvido no Rock Rendez Vous. "Era incrível como aqueles tipos que enchiam a sala e punham toda a gente a cantar não tinham nenhuma editora interessada. Eram vistos como um grupo maldito sobretudo por causa do nome e talvez por isso ninguém lhes pegava". Quando Tozé abordou a banda, no final do concerto, concretizava assim, ainda sem saber, uma profecia que Zé Pedro havia feito uns tempos antes, num momento de maior esmorecimento do grupo: "Descansem que as editoras hão-de cá vir".
'Circo de Feras' foi gravado em 12 dias úteis, com a editora a apostar em grande e a contratar a melhor equipa: o produtor Carlos Maria Trindade, o técnico de som José Manuel Fortes e a alugar o 'luxuoso' estúdio Angel II, na zona Oriental de Lisboa, perto do local onde viria a nascer mais tarde o Parque das Nações. O grupo andava numa fase de tal forma produtiva da carreira que apareceu em estúdio com cerca de 40 canções. "Dificil foi mesmo escolher", recorda Tozé Brito. "Eram tantas que algumas saltaram para o disco seguinte" lembra Tim.
Entre as várias curiosidades das sessões de gravação, ficou um pormenor: Kalu gravou o disco sempre na companhia do filho Francisco, à data com seis anos. Mas ficaria para sempre com uma mágoa: "Não me deixaram gravar com uma bateria acústica. Gravei o disco meio-eletrónico. Aquele som que se ouve é dos 'pads' que se usavam na altura. Hoje, só por isso, acho que gostava de o regravar". Outra das grandes inovações do álbum, foi também a gravação de sons industriais, algo que nunca tinha sido feito em Portugal e muito menos por uma banda de rock. Para o tema 'Desemprego', por exemplo, foram gravadas as rotativas das máquinas de cortiça do pai de Kalu, no Montijo.
A mesma fábrica de cortiça viria aliás a servir para a sessão de fotografias para a capa do disco e a servir de cenário para a gravação do videoclipe de 'Sai Prá Rua'. A escolha do primeiro single, no entanto, até começou por gerar alguma discórdia. Produtor e editora queriam 'Contentores'. A banda queria 'Sai Prá Rua', com Zé Pedro a fazer o maior finca pé. Ganhou o guitarrista. No videoclipe, a banda foi transformada numa espécie de grupo de vingadores que resgatava uma série de crianças das mãos de um gang de mafiosos. Entre as jovens que faziam de figurantes, estava Catarina Furtado, à data ainda uma criança. É ela que é salva por Kalu e que sai da fábrica nos braços do baterista.
No final, o disco saldou-se por uma pechincha. 'Circo de Feras' custou sete mil e quinhentos euros para ser feito. Hoje um disco dos Xutos nunca custaria menos de 50 mil.