
Todos já ouvimos histórias ou vivemos momentos em que num segundo estamos felizes, de bem com a vida, a fazer qualquer coisa corriqueira como a evitar queimar os dedos numa torrada ou a tomar café com um amigo e no segundo a seguir somos confrontados com uma tragédia ou algo que faz o nosso mundo desmoronar. Para Carolina Darian, esse momento é ainda mais doloroso e marcante do que para o comum dos mortais.
É filha de Gisèle Pelicot, a francesa cujo rosto correu o mundo durante o mega processo em que o marido, Dominique Pelicot, foi condenado por a drogar, durante mais de oito anos, organizando orgias para que outros fizessem o mesmo enquanto ela estava ali inerte. Depois de o relato avassalador da mãe ter comovido e chocado na mesma medida, chegou a vez de a filha, Caroline, contar a sua verdade num livro, que chega agora a Portugal, 'E Deixei de te chamar Papá', editado pela Guerra e Paz. "Ninguém valoriza o quotidiano banal até o perder", relata nas páginas do livro onde se recorda do dia em que deixou de ter pai, e foi confrontada com uma monstruosidade sem limites.
"Não tenho qualquer contacto com ele (pai) desde 2 de novembro de 2020. Contudo, à medida que nos aproximamos da fatídica data do julgamento (o livro foi escrito antes desse momento), sempre que consigo dormir algumas horas, sonho com ele. Ele fala comigo, rimo-nos, estamos juntos. Ao acordar, volto ao pesadelo: o presente. E sinto falta do meu pai. Na~o o homem que vai estar perante os juízes; o homem que cuidou de mim durante 42 anos. Sim, eu amava-o tanto antes de descobrir a sua monstruosidade. Ser filho da vítima e também do carrasco e´ um fardo terrível", conta no prefácio da obra, onde recorda a sua vida privilegiada até àquele fatídico dia invernoso.
Até aí, julgava-se uma felizarda, pertencente àquela franja de pessoas que têm uma chamada vida normal. Classe média, um casamento tranquilo, um filho com saúde, um bom emprego e uns pais que considerava modelo, daqueles que deram tudo para que a vida dos três filhos superasse a deles, para que chegassem mais longe.
Hoje, é difícil que não se lembre daquele dia do início de novembro de 2020. Nas últimas palavras que trocou com o pai, este comentava, orgulhoso, o disfarce do neto para o Carnaval. Depois disso, Caroline passou o dia em regime de teletrabalho, entre reuniões via zoom, enquanto o marido, depois de uma sesta a seguir ao almoço, era confrontado com duas chamadas perdidas, que mudariam a vida de todos os intervenientes daquela família. A primeira era da sogra, que lhe deixava uma mensagem assustada. "Sou eu, é urgente. Diz respeito ao Dominique. Por favor, liga-me."
O marido de Caroline pensou imediatamente em questões relacionadas com a saúde de Dominique, em tempos de Covid.
"O Dominique, o meu pai, pesa mais de 100 quilos e tem problemas respiratórios. Assim, naturalmente, em plena crise de covid, o Paul já o imagina nos cuidados intensivos. No entanto, a outra mensagem veio de um tenente da polícia do departamento de Carpentras. Primeiro, o Paul telefona à minha mãe", contou Caroline no livro, onde reproduz a conversa que mais tarde lhe seria contada pelo marido.
"Mas o que é que se passa?
– O Dominique vai ser preso. Foi apanhado a filmar por baixo das saias de três mulheres num supermercado. Esteve sob custódia policial durante 48 horas e já foi libertado. Entretanto, a polícia revistou o seu telemóvel, vários cartões SIM, a sua câmara de vídeo e o seu computador portátil. Os factos são muito mais graves", ouve da sogra.
Ainda atordoado, Paul retona a chamada ao tenente da polícia, que revela todo o cenário, muito mais grave, muito mais sórdido.
"'Encontrámos vídeos que mostram a sua sogra a dormir, obviamente drogada e a ser abusada por vários homens'. Estas agressões sexuais ocorrem desde, pelo menos, setembro de 2013, data das primeiras imagens que os investigadores extraíram dos vários dispositivos electrónicos do meu pai. O número de agressores é impressionante: 'Setenta e três, para já. Até agora, identificámos cerca de 50. Têm idades compreendidas entre os 22 e os 71 anos e são oriundos de todos os setores sociais: estudantes, reformados e até um jornalista. O seu sogro organizou, fotografou e filmou todos os actos. Eu próprio tive muita dificuldade em ver todos os vídeos. E ainda estamos longe de terminar a investigação'", foi o resumo desse telefonema, em que os investigadores temiam pela vida de Gisèle, constantemente drogada pelo marido, numa altura em que a sua idade já se aproximava dos 70 - ia fazer 68 anos.
Aconteceu a meio do dia, mas só à noite a mãe ganharia coragem para contar o calvário que acabava de descobrir aos três filhos. A primeira conversa foi com Caroline, a mais velha.
"O meu telemóvel toca. Finalmente, a minha mãe devolve-me as chamadas! Marcam precisamente as 20h25 no relógio do forno da nossa cozinha, que consigo ver mesmo atrás do Paul. Mais tarde, ficarei a saber que as pessoas que sofreram um choque traumático muitas vezes retêm apenas um pormenor, um cheiro, um som, uma sensação, algo minúsculo que se torna enorme. Eu, naquele instante, vejo o relógio do forno. Indica '20:25' em números brancos. Uma fronteira numérica. O meu nome é Caroline Darian e estou a viver os últimos segundos de uma vida normal", recorda, antes de contar a conversa com a mãe que mudaria toda a vida como até então a conhecia.
"– Caro, o teu pai está sob custódia policial desde esta manhã e não vai poder voltar a sair. Vai ficar preso.
Estou a tremer, não percebo bem o que ela me está a dizer.
– O teu pai drogou-me com comprimidos para dormir e ansiolíticos.
– Mas, mãe, o que é que se passa?
– Há mais. O teu pai também convidou homens para vir cá a casa enquanto eu estava inconsciente, para virem ao nosso quarto. Vi várias fotografias minhas. A dormir, deitada de barriga para baixo, na minha cama, sempre com homens diferentes, que não conheço.
Perco o controlo. Grito, insulto o meu pai. Vou partir tudo.
– Caro, é a verdade. Tive de ver várias fotografias na esquadra. Pensei que o meu coração ia parar. O tenente disse-me claramente que também há muitos vídeos em que eu sou abusada. Queria que eu visse um, mas disse-lhe que só as fotografias já eram insuportáveis. Disse-me: 'Lamento, minha senhora, mas aquilo que o seu marido fez foi monstruoso.'
A minha mãe começa a chorar. O Paul abraça-me.
As imagens atingem-nos, abjectas, sem sentido: a minha mãe na sua cama, de olhos fechados, inerte, com um homem aleatório…"
Depois disso, Carolina nunca mais foi capaz de trocar uma palavra com o pai, de o fitar, os três filhos mantiveram-se incondicionalmente ao lado da mãe, funcionando como a sua força, o seu escudo protetor. E Caroline, então com 42 anos, deu por si a recordar os momentos felizes que tinha vivido em família, a infância ao lado de um pai que considerava herói. Tudo isso passou a afigurar-se uma enorme e cruel mentira.
"Lembro-me de ti ao volante do Renault 25 preto, sobrecarregado, quando íamos de férias. Dizias piadas, punhas Barry White a tocar e marcavas o ritmo com a cabeça, tão entusiasmado como nós, os miúdos no banco de trás. Essa imagem feliz acabou de ser destruída. A partir de agora, és o organizador de orgias e um terrível mentiroso: a minha mãe conta-me o vosso último pequeno-almoço, que foi absolutamente normal. Quanta falsidade é precisa para se representar a comédia da tranquilidade durante todos estes anos?"
No entanto, esse não é um caminho linear, e Caroline assume que se debate constantemente entre o horror do que descobriu e tudo aquilo que viveu durante quatro décadas, o duelo entre as atrocidades e um pai que sempre se amou em permanente conflito.
"Tentei em va~o descobrir e compreender a verdadeira identidade do homem que me criou. Ainda hoje me pergunto como e´ que na~o vi nem suspeitei de nada. Nunca lhe perdoarei o que fez durante todos aqueles anos. No entanto, ainda tenho a imagem do pai que julgava conhecer. Apesar de tudo, essa imagem esta´ enraizada em mim e nas minhas memo´rias."
AS QUESTÕES DE MEMÓRIA, QUE PREOCUPAVAM
Dentro de um quadro de normalidade de uma família que vivia num ambiente considerado estável, ninguém nunca, por um segundo, imaginou as atrocidades que decorriam naquela casa simpática da pacata localidade de Vaucluse, na Provença. E os poucos sinais que agora, à luz dos novos dados, os filhos poderiam interpretar como sendo de alerta, confundiam-se com problemas normais que podem surgir com a idade.
Gisèle apresentava, por vezes, sinais de confusão mental, esquecia-se das coisas e andava mais abatida, tinha alguns lapsos de memória.
"Recordo as nossas conversas telefónicas, em que a minha mãe parecia estar confusa e a divagar. Essas ausências preocupavam-nos. Nós, os seus três filhos, vivemos a mais de 700 quilómetros de distância. Chegámos a pensar que fosse Alzheimer. O meu pai minimizava a situação. Dizia: 'A tua mãe não se sabe poupar, está sempre a fazer alguma coisa, é hiperativa, é a sua forma de gerir o stress'", afirmava, enquanto os filhos acompanhavam os relatos da mãe no seu périplo por especialistas.
"No Outono de 2018, o meu tio, médico de família reformado, sugeriu que podia ser um mecanismo de descompensação: 'É como quando o saco do aspirador está cheio e a máquina pára para não arder; é assim que se desliga e recarrega as baterias', disse-lhe ele. Todos acreditámos. A minha mãe fez na mesma uma TAC, mas, claro, sem qualquer resultado. Como é que podíamos ter pensado numa análise toxicológica? Porém, à medida que o tempo passava e estas ausências se tornavam cada vez mais frequentes, a minha mãe estava sempre preocupada. Sofria de insónias recorrentes, perdeu o cabelo e emagreceu – mais de dez quilos em menos de oito anos. Temia ter um AVC a qualquer momento e ficava ansiosa quando tomava conta dos netos ou apanhava o comboio para me vir visitar à região de Paris."
Começou a tomar ansiolíticos para tentar manter-se calma, completamente alheia a que o verdadeiro horror acontecia às mãos do homem em quem mais confiava, dos vizinhos que lhe davam as boas-tardes e de mais de 70 homens, alguns dos quais nunca irá, provavelmente, saber sequer quem são.
Dos 72 homens as autoridades conseguiram identificar 51, todos eles condenados em dezembro, numa sentença histórica que tornou pública um drama de horror e abusos, com Dominique Pelicot a ser sujeito à pena máxima em França: 20 anos de prisão pelo crime de violação agravada, ficando provado que, entre julho de 2011 e outubro de 2020, chamou pelo menos 51 homens para abusarem da sua própria mulher, enquanto esta se encontrava num estado descrito como "próximo do coma".
"Fui sacrificada no altar do vício. É a morte sobre uma cama. Não é um quarto, é um bloco operatório. Veem em mim um saco de lixo, uma boneca de trapos. Não se trata de cenas de sexo, mas de violação. É insuportável, insuportável", disse Gisèle num julgamento em que manteve sempre o queixo erguido, a coluna reta, tornando-se numa nova embaixadora pelas mulheres, a lembrar que não é uma coisa de outros tempos e que hoje, mais do que nunca, importa erguer estandartes contra os abusos, contra a violência doméstica e as atrocidades que as mulheres continuam a ser vítimas às mãos dos parceiros.