
Em 1999, estreou nas salas de cinema um filme que iria deixar uma marca incontornável na história da Sétima Arte: ‘Matrix.’ No filme, um trabalhador de uma prestigiosa empresa de software tem uma segunda vida enquanto hacker informático sob o nome de Neo, até que lhe é oferecida a verdade sobre o mundo no qual pensava viver pelas mãos de um misterioso homem chamado Morpheus, acompanhado pela colega Trinity, perante a ameaça dos antagonistas agentes, vilões que podem transitar entre mundos, nomeadamente o líder, Smith.
Para além das criativas cenas de ação, nas quais era visível a agilidade sobre-humana com que Neo e o agente Smith evitavam murros, pontapés ou mesmo balas - técnica que ficou conhecida como 'bullet time' - o conceito exposto no guião da autoria das irmãs Wachowski era o principal chamativo: o mundo no qual os humanos pensam viver não é real, sendo apenas uma criação digital – a titular Matrix (matriz, em inglês) – fruto de um universo bem mais sombrio controlado por outras espécies que ambicionam extinguir a ameaça humana.
22 anos mais tarde e com mais dois filmes da saga pelo meio, ambos bem menos memoráveis, chega agora ‘The Matrix Resurrections’, com um trailer que deixou os fãs entusiasmados e o regresso de Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss. Mas 22 anos é muito tempo e fomos puxar atrás a cassete, para perceber o que mudou no mundo entre a primeira e a mais recente aventura de Neo.
A ERA DIGITAL
Um dos temas predominantes em ‘Matrix’ é a era digital, que estava ainda a dar os seus primeiros passos na altura em direção ao autêntico 'boom' que ocorreu até aos dias de hoje. Apesar de se tratar de um tempo em que a ligação à internet era bem menos prática e também muito menos proeminente no quotidiano, a perspetiva de uma sociedade dominada pelo online já existia, ainda que variavam as previsões sobre como se daria essa realidade.
"Temos apenas alguns pedaços de informação, mas o que sabemos de certeza é que a algum ponto no início do século XXI, toda a humanidade estava unida em celebração. Ficámos maravilhados com a nossa magnificência por criarmos a inteligência artificial", diz Morpheus, enquanto apresenta o duro e "real" mundo do final do século XXII a Neo, que acredita ser o ‘escolhido.’ Há aqui algo de premonitório na ideia de como a humanidade se deixaria controlar pela própria "maravilha" que ajudou a criar e a popularizar nos países desenvolvidos: no primeiro mundo, ganharam destaque os computadores portáteis, que podem ser transportados para toda a parte, e os smartphones são agora canivetes suíços tecnológicos, munidos de infindáveis capacidades.
De seguida, a personagem de Lawrence Fishburne refere que essa IA levou ao ressurgimento de uma raça de robôs que iriam controlar o mundo, um medo que entretanto se dissipou à medida que, em conjunto, fomos percebendo as limitações das máquinas em relação aos humanos. Não é totalmente falso que a inteligência artificial assuma agora uma espécie de omnipresência, mas todos estão cientes de que é improvável que os carros autónomos ganhem vida própria.
Nesta mesma cena, Morpheus apresenta a Neo um vácuo tridimensional a que chama de ‘construct’: uma central em que as personagens adotam uma espécie de avatar correspondente à forma como se imaginam. "A tua aparência agora é o que chamamos de auto-imagem residual. É a projeção digital do teu eu mental", informa Morpheus, naquilo que é comparável à forma como se começou a normalizar, uma década depois, nas redes sociais, a construção da nossa própria aparência, controlada, mostrando apenas aquilo que queremos mostrar nas plataformas digitais, em duas décadas que começaram com salas de conversa como o mIRC ou o MSN e redundaram em autênticos tubarões dos nossos tempos como o Facebook, o Instagram ou o Twitter.
O COMPRIMIDO VERMELHO
Da primeira vez em que Morpheus e Neo se encontram na mesma sala, o primeiro dá a escolher ao protagonista um de dois comprimidos, um azul e um vermelho: "Tomas o azul, a história acaba. Acordas na tua cama e acreditas naquilo em que queres acreditar. Tomas o vermelho, ficas no País das Maravilhas e eu mostro-te até onde tudo isto vai dar."
A ideia de um momento no qual um indivíduo escolhe ignorar a realidade que lhe foi transmitida, interpretando-a como uma forma de escravidão a um sistema imposto – um pouco como faz Platão na Alegoria da Caverna – tornou-se num tema comum nas décadas que se seguiram ao lançamento do filme, por parte de indivíduos apoiantes ou percentes a vários quadrantes políticos e sociais: efetivamente, a metáfora do comprimido vermelho começou a ser utilizada por simpatizantes e personalidades proeminentes da alt-right norte-americana, assim como pela extrema-direita e por comunidades que alegam defender os direitos de indivíduos do sexo masculino (algo que originou um documentário em 2016 intitulado ‘The Red Pill’) como uma revolta contra os adversários políticos e nas ideias sociais.
Para as realizadoras e argumentistas do filme, Lana e Lilly Wachowski, duas mulheres transgénero – algo que só foi anunciado em 2010 no caso de Lana, que se tornou na primeira grande realizadora do cinema norte-americano a revelar-se transgénero, e em 2016 no caso de Lilly – a ideia inicial era bem distinta. Em declarações posteriores, datadas de 2020, Lilly sublinhou a tese de que ‘Matrix’ era também uma analogia para pessoas transgénero, sustentada pelo facto de que o comprimido vermelho se assemelha à medicação de estrogénio vigente poucos anos antes do lançamento do filme. Outra das provas que apontam neste sentido é a personagem Switch, que no guião original seria um homem na matrix e uma mulher no "mundo real", ideia que foi descartada, até porque Lilly frisa que o mundo "ainda não estava preparado" para um filme que abordasse tão vincadamente esta temática.
VINTE E DOIS ANOS DE 'MATRIX'
Entre 1999 e hoje, as irmãs Wachowski tiveram, discutivelmente, apenas mais um grande sucesso enquanto dupla. ‘V de Vingança’, em 2005, toca mais uma vez num universo futurista e também mais uma vez teve um impacto cultural significativo, nomeadamente no que toca à difusão da reconhecível máscara de Guy Fawkes usada pela personagem V. Após o tímido ‘Speed Racer’, de 2008, surge em 2012 o complexo ‘Cloud Atlas’ – com Tom Hanks e Halle Berry nos papeis principais, foi recebido de forma ambígua e pouco consensual – seguido de ‘A Ascensão de Júpiter’, em 2015, e da série da Netflix ‘Sense8’, criada por ambas, mas que, no final, acabou por se tornar num projeto a solo de Lana.
Como já mencionado, Keanu Reeves volta ao papel de protagonista. Ele que teve uma carreira de altos e baixos desde o lançamento de ‘Matrix’ – pouco depois, em 2001, perderia a sua companheira à época, Jennifer Syrne, para um acidente de automóvel. Posteriormente ao papel de Neo, teve também reconhecimento pelas interpretações de Constantine no filme homónimo de 2015, e nos três filmes ‘John Wick’, enquanto personagem titular.
Laurence Fishburne, ausente do novo filme, era já um ator de renome (como, a certo ponto, Keanu) aquando do lançamento de ‘Matrix’, e manteve-se um profissional especialmente prolífico, tendo feito parte de dezenas de projetos, não só no grande como no pequeno ecrã – teve participações regulares em ‘CSI’, ‘Hannibal’ ou ‘Black-ish.’ Já Carrie-Anne Moss, para além de uma notável participação secundária em ‘Memento’ ganhou uma entrada no mundo cinematográfico da Marvel, com a personagem Jeri Hogarth em ‘Jessica Jones.’
A RESSURREIÇÃO DA SAGAÉ com apenas Lana Wachowski na realização, recém-separada da irmã no percurso artístico, que surge ‘The Matrix Ressurrections’: o lançamento do quarto filme da saga ‘Matrix’ ocorre, de forma irónica, num período quase distópico da história recente. O nascer de uma pandemia que colocou em pausa todo o globo durante largos meses e continua a impedir o regresso à normalidade, sem fim em vista, é algo digno de um qualquer filme ou série que pareceria deveras irrealista não há muito tempo – aliás, em 2011, estreou ‘Contágio’, uma longa-metragem de ficção científica, com uma premissa pouco distante.
Depois de, em 2003, os fãs da saga terem recebido a dupla dose de sequelas: ‘The Matrix Reloaded’ e ‘The Matrix Revolutions’, o novo capítulo chega no próximo dia 23 de dezembro.Aos dois atores já mencionados do filme original, juntam-se Lambert Wilson e Jada Pinkett Smith, que já estiveram presentes nas sequelas, e um rol de novas entradas no elenco, como são exemplos Yahya Abdul-Mateen II (que interpreta Morpehus), Neil Patrick Harris (conhecido por ‘Foi Assim que Aconteceu’) ou Priyanka Chopra Jonas, refrescando assim o lote de caras da série cinematográfica.
Os dois trailers, já disponíveis, deixaram muitos dos fãs de água na boca. Vários dos elementos do filme original estão de volta: no início, Neo vive uma vida normal na matrix sob a sua identidade de nascença, Thomas A. Anderson, controlado por um terapeuta até que lhe é mostrada a verdade sobre o mundo através de Morpheus. Fica por saber se este novo filme conseguirá por fim reacender a chama de 'Matrix', agora numa nova geração.