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'Sim, Chef!'

Como o chef Gil Fernandes transforma as delícias do mar e das dunas em arte, na Fortaleza do Guincho

Se vir um chef de jaleca a apanhar ervas ou algas nas arribas da praia do Guincho, em Cascais, não se assuste porque é Gil Fernandes, o maestro da cozinha da Fortaleza do Guincho. Aos 31 anos, procura sustentabilidade, está preocupado com as alterações climáticas. Os pratos contam histórias e até há uma homenagem ao galinheiro da avó. Só que agora é tudo feito com muita pinta... em Alta Cozinha de Autor.
João Bénard Garcia
João Bénard Garcia
28 de outubro de 2021 às 22:44
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A maioria das pedras das paredes da Fortaleza do Guincho, ou Bateria do Alto, como se chamava no século XIX, têm quase 380 anos, mas a única defesa a que hoje se dedicam é à da boa gastronomia portuguesa contemporânea. O guardião-mor da qualidade é jovem, chama-se Gil Fernandes, tem 31 anos, é o 'chef executivo' da cozinha deste hotel de charme - integrado na cadeia internacional Relais & Chateaux - e vem da pequena vila de Ribamar, uma terra de mar e pescadores da Lourinhã.  

A Fortaleza está prestes a comemorar os seus 380 anos de edificado, mas lá dentro ocorre, todos os dias, uma revolução, sem armas, mas com tiros certeiros. Primeiro na cozinha onde o sereno e tranquilo 'chef' comanda as tropas. Segundo no 'spot' exterior: uma esplanada soalheira junto às muralhas, protegida dos ventos norte e com uma vista de cortar a respiração sobre o Oceano Atlântico, onde se pode almoçar ou simplesmente lanchar ou beber um copo sem estar hospedado no hotel. E terceiro, no acolhedor salão interior onde, à noite, se pode degustar o 'Menu Memória', uma criação do jovem e irreverente 'chef' Gil, com "15 a 18 momentos degustativos". Com surpresas ato após ato, como se de uma peça de teatro se tratasse.

É único e diferente, mas já lá vamos. Primeiro fomos pela manhã, bem cedo, com Gil Fernandes às arribas do Guincho colher as ervas com que vai confecionar os pratos do dia. A maré cheia não nos permite acesso seguro às algas, mas o nosso cicerone adapta o programa às suas necessidades culinárias. A colheita das ervas que brotam ao redor do luxuoso hotel, junto às escarpas, exemplificam bem o conceito inovador que implementou na cozinha da Fortaleza, que em 2001 conquistou a sua primeira estrela Michelin e que Gil, e os seus antecessores, sempre souberam conservar.

INSPIRADO NA AVÓ

Gil fala com amor das ervas que a natureza dá. E tudo por causa de uma personagem que, sendo humilde e sem lá ter estado, já faz parte da história gastronómica da Fortaleza. "Apanhámos a inola, uma erva que dá ao prato um aporte de sal. O nosso menu chama-se 'Memórias' e tenho um prato, que é um 'snack' engraçado a que chamámos 'Galinheiro da Avó São', em homenagem à minha avó. O prato é um meio ovo onde enchemos com pombo selvagem, como todas as partes do pombo. Molho, crocantes e adicionamos esta erva marítima que lhe dá um toque diferente", descreve, enquanto já na cozinha recheia o meio ovo, o coloca num mini-galinheiro de madeira que leva à mesa, fecha a porta e sorri.

O 'chef' é jovem, mas no fundo vai demonstrando ser uma alma velha. De memórias. "A minha avó sempre adorou ervas medicinais. Sabia quais as que ajudavam na constipação ou nas dores e fiquei um bocadinho com essa cena das ervas que fazem bem à saúde", recorda, avançando como a sua experiência nacional e internacional o despertou para a fortuna que a natureza nos dá. "Estive no 'De Lebrije' (3 estrelas Michelin) na Holanda e era normal irmos ao campo apanhar ervas para comer e confecionar os pratos. Foi a partir daí que fiquei muito curioso com as plantas. E sei que na mesa são produtos que dão sabores diferentes".

NO 'JARDIM' DA NATUREZA

O cozinheiro vai-se entusiasmando na falésia e parece uma criança num recreio de ervas marítimas. "Olhem, descobri esta erva, que se chama erva de caril. Não é caril, mas sabe a caril. Ela fica no seu expoente máximo no verão quando tem a flor a sair. É aí que a apanhamos e fazemos uma pequena infusão para lhe extrair estes aromas a caril. Temos um prato que se chama Pastel de Ostra, aprendi isto em Goa. Desfragmentei aquilo, fiz uma parte crocante, a ostra, caril e a erva de caril. É este conjunto de ideias que ando sempre à busca", conta, satisfeito.

Mais adiante Gil encontra outro dos seus ingredientes favoritos do que a natureza dá e chama-nos empolgado. "Esta aqui é o chorão. É uma praga e existe por toda a costa portuguesa. Porque não usá-lo. Este suco sabe, no verão, como se fosse um morango salgado e dá-nos aportes criativos ao menu", conta, explicando como acabam no prato dos clientes da Fortaleza. "Há uma parte pessoal nessa escolha, mas também a nível de sabor conseguimos enriquecer o menu. São produtos de que as pessoas não estão à espera. Tornamos a experiência ainda mais inolvidável e diferente. Para nós Fortaleza é fundamental trabalhar produtos que não são usuais. E isto ajuda-nos a pegar em algo que está na natureza, que é sustentável. Não estamos a danificar nada do mundo e exploramos um produto que ninguém explora. E ver como é que ele se aplica, se é em molhos, se é cru, se é cozido e essa parte toda é muito interessante. Essa parte de descoberta é essencial", diz, com um brilho no olhar.

SERVIR COM PÉS E CABEÇA

Gil garante que lê muito sobre e também conta com a ajuda de uma prima que é bióloga e o encaminha. "Apresentamos na mesa tudo de uma forma apelativa, não é cru. Não pegamos no arbusto e levamo-lo para a mesa. Preparamo-lo para que seja apelativo e comestível. As pessoas não sabem, reagem bem a perguntam o que estão a provar. A nossa equipa de sala está bem formata para explicar as coisas às pessoas", remata.

Já no interior da cozinha do hotel, Gil começa a empratar dois momentos do menu que criou, com o consenso e a "unanimidade", frisa, da sua equipa. Primeiro o encantando e inusitado 'Galinheiro da Avó São'. Depois o 'Sama'. Sim, 'Sama', uma homenagem à caruma das matas de pinheiros de Ribamar. "O prato chama-se 'Sama' (é a parte da caruma dos pinheiros com que fumam e cozinham os ouriços. Lançamos o fogo e aquilo cozinha rapidamente. Foi daí que partiu a memória deste prato. O prato tem pargo, ouriços fumados, algas" e depois é fazer magia: "let the show begin", dispara, começando a desenhar com os ingredientes um cenário marítimo.

Os pratos sobem à sala e com eles o 'chef', pelas labirínticas escadarias de pedra da Fortaleza onde outrora soaram os canhões que defenderam Lisboa de piratas e de invasões inimigas e hoje acolhe de forma prazenteira os forasteiros, alguns descendentes dos primeiros.

SERVIR CLIENTES, NÃO O MEU EGO

No sossego da sala de jantar Gil Fernandes confessa, revelando, o seu conceito de cozinha de autor. "Para mim é importante a estabilidade do menu e a sua consistência. Todos os nossos pratos são pensados, analisados, testados e uma vez definido avançamos. Recolho sempre o feedback da equipa. Há uma unanimidade que tem de ser atingida. Também recebemos inputs do cliente. Não coloco na mesa um prato só porque lhe acho piada. Estou a servir um cliente, não o meu ego", assegura.

Antes de começar a gravar o seu testemunho, uma música suave enche a sala. A produção pede que se baixe o som para não interferir com a nossa gravação, mas Gil faz um pedido irreverente a uma colaboradora: "Mete rock enquanto eu falo", diz a brincar. Logo ele, que tem pinta de 'rockstar'.

PORTUGUÊS E "CONTEMPORÂNEO"

"Olá, sou o Gil Fernandes, sou o chef executivo da Fortaleza do Guincho, tenho 31 anos e adora o que faço", apresenta-se, garantindo ao que vem: "O nosso tipo de cozinha é portuguesa contemporânea e isto engloba produto português e da máxima qualidade. Esta casa trabalha com a máxima qualidade há mais de 20 anos. Para nós o sabor está acima de tudo. Sazonalidade. Cada vez usamos mais a tradição como visão. A gastronomia portuguesa é aquela com a qual me identifico mais. É a cozinha que mais gosto de fazer. Fazemo-la aqui, de uma forma desconstruída".

Saber como o faz… só numa visita obrigatória a um espaço único, que é um dos segredos mais bem guardados de Cascais e da gastronomia lisboeta topo de gama…

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