
Há uma elevada probabilidade de, ao sentar-se numa mesa do restaurante Solar dos Presuntos, no coração de Lisboa, que usa com orgulho o subtítulo Alta Cozinha de Monção, estar a ocupar um lugar onde horas, ou até mesmo minutos antes, se tenha sentado uma figura pública, da política, do futebol, dos negócios ou das artes. Nacional ou internacional.
Fizemos a pergunta a Pedro Cardoso, 54 anos, o filho dos fundadores e agora maestro da gestão do espaço, que classifica como "um império!". "Faz ideia da quantidade de figuras públicas que passaram pelo vosso restaurante?". Ele sorri, como que a ganhar tempo para dar uma resposta que não soe a pretensiosismo: "Faço ideia de quantas figuras públicas passaram por esta casa… Mas acho que consigo contabilizar com maior facilidade aquelas que ainda não passaram. E confesso que não me consigo recordar de um nome relevante da nossa sociedade que não tenha cá passado".
Nem ele nem o pai, Evaristo Cardoso, de 78 anos, que apesar de estar afastado da sala e da cozinha, para poder gozar os prazeres da reforma, não deixa de estar presente, quase todos os dias, na casa que fundou em outubro 1974, quando ainda se ouvia nas ruas os ecos da Revolução dos Cravos, e onde ainda almoça e janta com famosos da nossa praça que, mais do que clientes, se tornaram amigos do peito da família Cardoso.
Minutos antes de se prepararem para tirar uma fotografia de família, com o filho Pedro, a neta Carolina e os avós Evaristo e Maria da Graça, de 80 anos, Pedro tinha reforçado a ideia de que aquele restaurantezinho de 18 lugares, que começou há quase 47 anos, no Largo da Anunciada, que nasce na reta da rua das Portas de Santo Antão, ao lado do elevador do Lavra e a poucos metros do Coliseu, cresceu graças ao excelente perfil de "relações públicas do pai".
UM PATRÃO COM MUITA LATA
Com um sorriso maroto e bem-disposto, Evaristo Cardoso conta-nos o segredo do seu sucesso, intercalando pelo meio a história da sua ida ao México, em 1986, a acompanhar a comitiva da Seleção das Quinas: "Aquilo no México correu-nos muito mal em termos de futebol. Mas correu-me muito bem em termos de promoção do nosso restaurante e da comida portuguesa. E depois valeu também o facto de eu ter uma grande lata e fazer amizades em todo o lado".
A seu lado, o filho acena em sinal de confirmação, acrescentando a sua versão da famosa viagem à América Central. "O meu pai sempre trabalhou na hotelaria e foi conquistando grandes amizades no mundo do teatro, do futebol. A ida ao México, em 1986, então, foi o grande louvor que lhe deram de poder representar Portugal e a nossa gastronomia. Isso trouxe-lhe um mediatismo e um retorno fantástico", salienta.
Só que os clientes do Solar dos Presuntos não entram no restaurante apenas para receber doses de simpatia de Evaristo. A fama da casa, que começou com uma pequena cozinha à entrada, no local onde hoje repousavam os presuntos à espera de serem comidos - e com os donos a morar no apartamento por cima - deve-se, e muito, a Maria da Graça, mulher de Evaristo e mãe de Pedro. Ela exerceu a arte de cozinhar na casa de fados de Márcia Condessa e foram os pratos tradicionais da culinária portuguesa, sem inventar muito, que trouxe para o negócio de família. A receita de sucesso é tão boa e com tão bons resultados que o único ingrediente que introduziram no serviço foi… o glamour.
Hoje é o chef Hugo Araújo quem toma conta dos fogões, que outrora Maria da Graça tratava por tu, e gere uma equipa na cozinha com 20 pessoas. Hoje, em dias normais, o Solar dos Presuntos serve 600 a 700 refeições, com as mesas sempre a rodar.
"As pessoas podem pensar que é fácil gerir uma cozinha com pratos tradicionais, mas a cozinha do Solar dos Presuntos obrigou-nos a criar uma logística gigante de produto, seja nos ingredientes ou nos molhos, que têm de ser feitos e mantidos com qualidade, ou na metodologia da confeção e do serviço. É um processo muito complexo e, em certos aspetos, mais difícil do que numa cozinha de autor", afiança o cozinheiro que veio do H2otel, em Unhais da Serra, na Covilhã.
AI, AI A LAMPREIA
O chef Hugo é uma das peças fulcrais no funcionamento da enorme máquina de restauração em que o Solar dos Presuntos se transformou nos últimos anos, sem perder as características de restaurante acolhedor de família.
Para simplificar, que a ementa é um colosso de boa gastronomia lusitana, perguntamos a Pedro Cardoso qual destacaria como prato de eleição. Ao início sente dificuldade na escolha, mas deixamo-lo percorrê-la mentalmente, pois sabemos que escolherá bem. "Temos tantos pratos que acho serem fantásticos: o Bacalhau à Gomes de Sá às segundas, o Arroz de Cabidela às terças, o Cozido à Portuguesa às quartas, às quintas a Panela, às sextas o Arroz de Bacalhau", vai revendo, até chegar onde queríamos: ao favorito: "É a lampreia. É um prato que fazemos de A a Z na perfeição. Há quem goste e quem não goste. É um dos pratos mais difíceis de agradar a toda a gente. Basta o tipo de arroz que se usa. O sal a mais ou a menos. O excesso de cravinho ou não. Mas dá-me gozo porque ou se sabe fazer ou não vale a pena inventar".
Tal como acontece com as mexidas num restaurante que já é um dos monumentos da culinária lisboeta. "Ao longo dos tempos os meus pais foram construindo este império que é o Solar dos Presuntos. Foram tremendas as mudanças, sempre na tentativa de chegar à perfeição, dar o máximo e todos os dias ser bom. Esse é o maior desafio", confirma Pedro Cardoso, que nos confessa qual é o seu maior prazer diário. "A coisa mais gratificante é o cliente, a seguir ao almoço ou ao jantar, chegar ao pé de mim e dizer ‘obrigado, foi um excelente almoço ou jantar’. A seguir a pagarem-nos uma refeição agradecerem-nos pelo trabalho".
ADELE, UMA AMIGA PARA A VIDA
Inevitavelmente queremos exemplos dessa gratificação, e até nomes de clientes, se faz favor. O gerente satisfaz-nos a curiosidade na íntegra e conta-nos uma história: "A situação que me trouxe maior gratificação foi a que se passou com a cantora Adele. Veio a Portugal cantar e veio jantar ao Solar dos Presuntos. Vinha descaracterizada e estava a passar despercebida. Entretanto soubemos que era ela e criou-se ali uma relação extraordinária. Na primeira vez dela alguém cantou os parabéns numa outra mesa e ela entrou em pânico de estar com muita gente e de não conseguir controlar a situação, ficou atrapalhada, pediu pastéis de nata, na altura não tinha, mas lembrei-me de ir aqui ao lado, à casa do Carlos Moya, e comprei seis pastéis de nata quentinhos. Ficou rendida", jura.
Tão rendida que, conta-nos, no dia a seguir voltou para jantar. "Perguntou-me se queria ver o concerto dela. Já tinha bilhetes, mas ela disse-me que os meus eram para um sítio normal e queria que fosse com a minha família para um sítio especial e deu-mos. No dia seguinte não consegui ir por causa de um problema aqui no restaurante, mas soube que ela, a meio do concerto, parou para dizer que estava ‘a ficar gorda’ e que isso se devia ‘ao Pedro do Solar dos Presuntos’. A minha mulher e as minhas filhas iam caindo pela cadeira abaixo. É isso que me dá força para todos os dias continuar".
IMORTALIZADOS EM MURAL DE VHILS
O que também lhe dá prazer todos os dias é ver que conseguiu, após seis anos de obras intensas e complicadas no espaço que agora se divide por quatro pisos e um pátio interior, onde até um cemitério romano foi descoberto, que pode perpetuar a memória dos pais. "A coisa mais emocionante que fizemos nesta renovação foi aquele mural do Vhils (escultor), em homenagem aos meus pais. Tenho a certeza que o restaurante vai ser um sucesso absoluto, mas aquilo foi a maior obra que fizemos. Todas as pessoas que passarem ou olharem para aquele mural e vão reconhecer ou conhecer o Evaristo e a Graça, os meus pais, a alma deste espaço", diz, emocionado.