
Há um episódio da série de documentários 'Parts Unknown' - 'Lugares Desconhecidos', se preferirmos – a última que gravou para a CNN – em que Anthony Bourdain, o chef está sentado num restaurante da Florida com Iggy Pop, a estrela do punk rock. Os dois almoçam "comida saudável" brindam com um copo de vinho branco, Bourdain, olha para trás na sua vida, no percurso dos dois, e questiona o que estão eles a fazer ali, a serem "pessoas normais", depois de tudo o que passaram. Iggy responde à altura. Afinal só o preenchimento do passado proporciona saborear assim aquele presente, de forma leve, solar.
A cena aconteceu em 2015. Três anos depois, em junho, Bourdain seria encontrado morto, enforcado, num quarto de hotel em Paris. E chorado pela sua descontração e sabedoria mundo fora.
A situação de Miami, ao lado de Iggy Pop – diga-se que o episódio termina com os dois em frente ao mar, naquele inverno tropical, a acreditar que "sim, é possível, apesar dos pesares..." – a do próprio "adeus", horrivelmente cinematográfico, ajudam a explicar por que Bourdain se tornou especial para qualquer um de nós, que gosta de rock, de vida, de 8 e 80 e, evidentemente de comida. Pornograficamente de boa comida e do apelo aos sentidos que esta é capaz de despertar.
Por isso não é estranhar a forma como Bourdain foi capaz de "tocar" quem com ele se cruzou. Como Ljubomir Stanisic, o chef jugoslavo que encharcou a televisão portuguesa de palavrões e de emoções, que abraçou os concorrentes dos seus programa, como que trata "como é preciso" a mais preciosa iguaria, moldando-a a gosto sem perder a essência. Os dois – o jugoslavo e o chef americano – cruzaram-se em Lisboa em 2011 e o resultado desse encontro – que marcou para sempre Stanisic – é bem expresso no livro 'Viagens pelo Mundo, um guia irreverente' que retrata as andanças pelos quatro cantos do planeta do chef da CNN – Portugal incluído – e no qual Ljubomir assina o prefácio.
"Conheci-te numa manhã de sol em dezembro de 2011. O encontro estava marcado para o Clube de Chinquilho de Alcântara", recorda ele. O que por lá aconteceu pouco importa. O que fica para a História é o resultado. "Não sabes mas ajudaste-me tanto...! (...) Ajudaste-me a perceber que não estava sozinho, que não estava louco (pelo menos não tão louco), que não era uma ave rara, fruto dos traumas de guerra, antes um homem como tu: um misfit, um desbragado, um insaciável, um provocador, um amante. Apaixonado pela história contida num prato de comida. Sôfrego do produto, das pessoas, do Mundo".
Mais não seria necessário dizer sobre os dois e a sua forma arrebatada de lidar com a vida. "Escrevo, viajo, como, e tenho fome de mais", anunciava Bourdain no genérico de 'No Reservations', programa que o trouxe a Lisboa e ao jugoslavo. E é exatamente isso que sentimos neste livro e para o que Stanisic prepara os leitores ainda no prefácio, nesta imensa carta de amor ao guru: "Neste 'Atlas do Mundo' que se segue, mais do que dicas de viagens estão as tuas entranhas, os teus 'nasty' e nada-'nasty bits'. É bom voltar a eles. Ao nosso amor comum por porco [curiosamente foi porco o "prato" escolhido para o almoço com Iggy Pop, quatro anos depois de Lisboa, na Florida], por picante, essa 'maravilhosa interação sado-masoquista', como a descreveste. (...)".
Poderíamos continuar: entre ingredientes e o prazer que cada um provoca, inspirações, pensamentos que só alguns entenderão... "Porque, se o corpo é um parque de diversões e não um templo sagrado, como tu dizias, o teu tem uma roda gigante que nunca vai parar de girar", conclui Stanisic.
ENTÃO E PORTUGAL?
Então, e onde fica Portugal, e a passagem do "irreverente chef" por Lisboa e pelo Porto? Começa na página 424, de forma sucinta – porque o Mundo é grande e há que apresentá-lo – mas com uma ode aos lisboetas: "Os lisboetas gostam de comer. Falam muito sobre comida e têm ideias firmes sobre o que os visitantes deveriam comer e onde". Posto isto, segue-se uma passagem pela cervejaria Ramiro, seguida pelo Sol e Pesca, na companhia dos Dead Combo – ou seja marisco e peixe à mesa. De Lisboa seguimos para o Porto, para provar "francesinha", evidentemente, entre a cervejaria Gazela e o Café Afonso.
Terminado o fado português, seguimos viagem pelo mundo em 500 e muitas páginas de livro. Sem freio, como as descrições de Bourdain, sem tento na língua e mortos, ou melhor, vivos de saudades.