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WEEKEND Caderno de viagens

Uma semana na Córsega. Prepare-se para ser ignorado e para o revirar de olhos constante, mas não desista! Quando entrar no espírito, vai apaixonar-se...

A primeira impressão leva-nos a torcer o nariz e a pensar o que é que fomos fazer ao nosso dinheiro, mas ao fim de pouco tempo já estamos rendidos. A Córsega tem um charme e identidade muito próprios de uma ilha que é francesa, mas não se revê nas cores da bandeira e que tem muito mais afinidade com Itália. Os corsos são genuínos, não cedem a modas e permitem-nos uma conexão com o que as viagens têm de melhor: a autenticidade longe de estereótipos, Zaras e McDonald's. As praias são um charme e a comida uma perdição. Embarque connosco nesta viagem de sete dias pela Córsega. Esta é a primeira crónica do nosso Caderno de Viagens que inauguramos esta semana na Weekend
Rute Lourenço
Rute Lourenço
18 de julho de 2024 às 00:12
Córsega
Córsega

À chegada ao aeroporto de Bastia, na Córsega, e com as expectativas em alta de quem vai passar uma semana no paraíso, dá-se o primeiro golpe. No stand de aluguer de automóveis, a funcionária mais antipática da história ignora o meu inglês e, num dialeto corrido, avisa-me, qual professora primária de régua na mão, o que acontece se não cumprir os mandamentos da companhia: "O carro está limpo, é para devolver limpo. O depósito está cheio, é para vir cheio, ok? Além disso, é novo, a estrear, por isso qualquer risco, já sabem."

Que azar, pensei, cruzar-me logo com alguém tão pouco amistoso. Mas já devia saber que raramente há coincidências e, na verdade, este foi apenas o primeiro embate com um povo que tem uma 'casca grossa', que se pode confundir com antipatia natural, não tem paciência para turistas e não anda 'com eles ao colo', não os bajula, simplesmente deixa-os estar. Parece uma contradição para uma ilha que vive do turismo, mas na verdade perceber esta carapaça é entender aquilo que foi a História da Córsega: originalmente italiana e vendida à França em 1768 como forma de saldar uma dívida.

A chegada à Córsega
A chegada à Córsega

Já se passaram séculos, dias infinitos, gerações e gerações de famílias, mas há quem diga que os corsos nunca conseguiram fazer as pazes com a História, libertar-se do peso da traição, com o facto de terem sido, assim, descartados, como mercadoria reles, e, na verdade, isso é visível em cada palmo desta terra. Oficialmente, eles são franceses mas têm um dialeto que soa a um 'bonjour' cantado em italiano, são completamente mediterrânicos, loucos a conduzir (simplesmente, atiram-se para as rotundas) e, bem, quando nos sentamos à mesa, sentimos efetivamente que estamos em Itália. A pasta e pizza são deliciosas, com aquela mão exímia que só os italianos têm para estes pratos, mas com a mais-valia de se juntar a isso a delicadeza francesa para a cozinha.

Pizza na Córsega
Pizza na Córsega

Se houvesse uma palavra para definir aquele povo, até poderíamos dizer que eram qualquer coisa como "fritalianos", mas na verdade eles são orgulhosamente corsos. Pela ilha, não há bandeiras francesas, mas sim a sua pópria, da Córsega, que é quase um símbolo de independência.

Ela está por todo o lado: cafés, bares, restaurantes, e à chegada a uma das praias mais turísticas de Porto Vecchio, Palombaggia, o cartaz de 'boas-vindas' para quem a visita é este: "Se esta bandeira te incomoda, eu ajudo-te a fazer as malas." Fiquei uns minutos a olhar para a placa e a pensar como aquele aviso define o espírito de uma ilha, onde por todo o lado se respira um sentimento anti-francês, com mensagens como 'Corsica Libera' a serem pintadas em muros e autocolantes mais ofensivos deixados aqui e ali.

A mensagem à entrada da praia de Palombaggia
A mensagem à entrada da praia de Palombaggia

Mas calma, isto é apenas um contexto, uma parte da história, para ajudar a não julgarmos a Córsega pela aparência porque, meu Deus, a ilha é um pequeno paraíso a duas horas e meia de Lisboa.

ÁGUA TEMPERADA E CRISTALINA

Se depois desta introdução ainda pondera viajar até à Córsega, deixo aqui alguma informação útil: a Easyjet abriu uma rota para Bastia e, em época alta, as viagens rondam os 200 euros (ida e volta). A ilha é grande e há beleza em todo o lado. Se no Norte temos os parques naturais, para Sul as praias de água cristalina convidam a mergulhos.

A beleza das praias do Sul
A beleza das praias do Sul

Tratando-se de umas habituais férias de verão, a nossa escolha recaiu sobre Porto Vecchio, no Sul. Do aeroporto de Bastia até ao destino separavam-nos pouco mais de 140 quilómetros, por isso fiquei surpreendida quando vi que o GPS nos dava uma estimativa de quase três horas de viagem. É, sem dúvida, a parte mais tortuosa porque só há uma estrada a percorrer, a famosa route T10, e há muito poucos túneis, o que quer dizer que de x em x quilómetros temos uma rotunda para contornar, e no verão, isso pode tornar-se numa dor de cabeça de filas intermináveis.

Isso, aliado ao facto de a vista inicial não ser estonteante, fez com que a primeira impressão da ilha não fosse a melhor. A dada altura, ao olhar pela janela, sentia-me como se estivesse em algumas das zonas mais feias de Portugal, com prédios de uma arquitetura em que não bate a bota com a perdigota e abarracamentos que não lembram ao careca, grafitis inacabados aqui e ali, contentores de lixo gigantes na berma da estrada a marcarem a paisagem. Mas rapidamente iria aprender que na Córsega é assim: o bonito e feio convivem lado a lado, numa espécie de irmandade que de, de tão peculiar, se torna bela.

Volta e meia era, também, assolada com a sensação de que tinha voltado ali algures aos anos 90. Havia pessoas com cartazes a pedir boleia na estrada e à passagem por alguns lugarejos espreitavam tascos parados no tempo, lojas de roupa com peças que já não via seguramente há mais de dez anos e postais amarelecidos pelo sol à entrada das lojas de souvenirs (eu tenho pena, claro, mas ainda há alguém que envie postais nas férias?).

Uma loja de souvenirs
Uma loja de souvenirs

O que ao início é estranho rapidamente se assimila e, depois de uma semana na Córsega, esta foi uma das coisas que mais gostei na ilha. Eles são autênticos, puros e genuínos, não cedem a modas, não se preocupam em ser posh, fancy, estão-se nas tintas para o que os outros pensam, vivem segundo as suas próprias regras. Se em Menorca querem vender souvenirs boho-chic é lá com eles, aqui ou compram um postalinho, uma bandeira corsa, ímanes para o frigorífico ou então vão para a casa de mãos a abanar.

Numa altura em que a globalização torna todos os destinos muito idênticos, onde há uma Zara e um McDonald's em cada porto, onde sentimos que, de repente, estamos em Espanha, mas na verdade podíamos estar em Portugal ou na Grécia que era a mesma coisa, esta autenticidade é quase comovente, romântica.

A praia de Palombaggia
A praia de Palombaggia

UM PARAÍSO COM A SARDENHA ALI AO LADO

O amigo que recomendou a Córsega já me tinha avisado: "Ali, sentes-te livre", e é a mais pura das verdades. Apesar de não serem o povo mais simpático do mundo, eles são hospitaleiros à sua maneira, até na forma como partilham aquele paraíso contigo.

As praias são um sonho: a areia é limpa, as águas calmas, temperadas e absolutamente transparentes: uma piscina natural a céu aberto. Se a ilha em si é pouco instagramável (no sentido atual do termo, porque um bar ainda se chama bar e não qualquer coisa lounge e os brunchs e as granolas de sementes ainda não entraram por ali fora), as praias garantem 'likes' a perder de vista. De repente, sentes-te no paraíso e claro que há mais sítios igualmente bonitos na Europa, mas a diferença, por exemplo, em relação às Baleares é que, em época alta, não vais ter de disputar um cantinho de areia com ninguém, há espaço de sobra para que te sintas em paz e possas desfrutar daquela beleza única com a tranquilidade que merece.

As praias da Córsega
As praias da Córsega

Ao pé de Porto Vecchio, há um sem número de praias lindas a uma curta distância e de acessos fáceis, não é preciso ser alpinista para lá chegar. A que mais gostei foi, sem dúvida, Palombaggia, porque é ampla, limpa e a água é qualquer coisa do outro mundo. Se olharmos em frente, conseguimos distinguir os contornos da Sardenha, em Itália -  que pode visitar à distância de uma viagem de ferry - e para onde quer que o seu olhar recaia só vai ver azul, verde e beleza em estado puro.

Depois, há a famosa Santa Giulia, conhecida por albergar um dos resorts mais exclusivos da região - o Moby Dick. O areal é menos extenso, mas tem um charme muito carcaterístco, que merece uma visita.

A Praia de Santa Giulia
A Praia de Santa Giulia

São duas das mais famosas, mas as menos conhecidas não lhe ficam atrás: Saint-Cyprien e Cala Rossa são tão queridas que até encontrámos estrelas do mar e, seguindo em direção a Ajaccio, a capital, Rondinara, Bonifácio e outros pequenos paraísos gritam por uma visita.

A parte que mais gostei é que, muitas vezes para lá chegar, percorremos uma zona de campo, de naturza em estado puro, onde se sente o cheiro a figueiras e a alfazema e há casinhas empedradas cobertas de era, que mereciam estar no escaparate de postais - ainda que as fotografias não façam jus àquilo que os nossos olhos veem.

Uma casa a caminho de Palombaggia
Uma casa a caminho de Palombaggia

CUSTO DE VIDA À MODA DA FRANÇA

Para além de praia, não espere muito mais para fazer do que comer, dormir, e talvez reconectar-se consigo próprio. A rede é péssima, o que nos obriga a ler mais, a conversar mais, a brincar mais, e a pousar o telemóvel durante horas até nos esquecermos dele (sim, isso é possível). Nos dias que correm, esse detox digital é precioso. 

Porto Vecchio, a maior localidade onde fiquei, é pequenina, acolhedora, e pouco mais tem do que restaurantes, bares, umas lojecas e um carrossel à antiga, que faz a delícia dos mais novos. Procurámos algumas recomendações de restaurantes na internet e adorámos o L'Avivi, perdido no meio do nada, mas com um chame muito próprio, mas na verdade não têm com que se preocupar porque na Córsega até aquele restaurante que tem pinta de ser 'para enganar turistas', não o é.

O famoso carrossel de Porto Vecchio
O famoso carrossel de Porto Vecchio

Porque eles são brutalmente honestos e até podem passar-se quando o trabalho aperta e há 20 mesas para servir ao mesmo tempo, há gritos a ouvirem-se da cozinha que nos deixam a pensar se estará lá alguém a ser torturado. Furiosos, chamam as crianças da família para dar uma mãozinha com as mesas e, se for preciso, até te reviram os olhos na cara quando tentas perceber o que é que aquele prato com o nome esquisito tem, afinal. Mas depois, tudo é divinal, bem confecionado e magnificamente apresentado.

O caso mais curioso deu-se quando decidimos parar numa roulote junto a uma rotunda qualquer para comprar umas coisas para comer a seguir à praia. Se fosse em Portugal, provavelmente havia óleo a escorrer por todo o lado, moscas a varejar pelos alimentos ou bifanas a ganhar bactérias à espera de serem ensopadas no óleo de uma vida. Mas ali, e por oito euros, comemos paninis crocantes e uma espécie de hamburgueres preparados com o preceito de chef, as batatas sequinhas até à última gota, num brio e perfecionismo que nos deixam a pensar em muita coisa. 

A roulote de beira de estrada
A roulote de beira de estrada

Portanto, na Córsega, come-se mesmo bem, mas esteja preparado: o nível de vida é caro. Os pratos em restaurantes normais estão entre os 20 e os 25 euros, mas se alugar casa, consegue contrabalançar com algumas refeições mais económicas, pois no supermercado o custo dos produtos não é assim tão diferente do nosso, apenas ligeiramente mais caro.

A ementa de um restaurante em Bastia
A ementa de um restaurante em Bastia

Mas não é cliché, valeu cada cêntimo, viajar vale cada cêntimo e mais do que os mergulhos e aquela água que, pelo menos a mim, tem o condão de me lavar a alma, vim de lá com uma lição de vida atrelada. Numa altura em que 'todos' queremos estar inseridos em grupos de isto ou aquilo, enquandrarmo-nos em alguma coisa, fazer parte de, a verdadeira beleza está nas coisas mais genuínas, por mais que não correspondam à norma, por mais que não sejam o que o algoritmo do Instagram pede. Há qualquer coisa de muito romântico nesta Córsega, de criança que diz o que pensa e não perde o brilho no olhar.

Porto Vecchio
Porto Vecchio

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