
Nick Willings é o filhos mais novo de Paula Rego e do pintor britânico, já falecido, Victor Willings. Dirige o museu dedicado à mãe, em Cascais, a "Casa das Histórias - Paula Rego". E foi em busca das histórias mais secretas da mãe que se embrenhou, no documentário que agora estreia em Portugal.
O realizador, que viveu parte da infância em Portugal, lembra-se de a mãe se isolar, para pintar, e deixar os 3 filhos entregues a si próprios, na floresta que rodeava a casa onde moravam, na Ericeira. "O pincel sempre foi mais importante", explica Willings, em entrevista ao site FLASH!.
Nick Willings pediu à mãe, apesar de saber do seu feito reservado, para aceder a fazer este documentário. O objetivo era muito íntimo: "Fiz este filme para entender e conhecer a mãe. Para compreender por que é que o pincel era mais importante do que eu". Fala português e bem. Por que é que resolver fazer o documentário em língua inglesa?
Porque fi-lo para a BBC. Senão, seria em português. Gosto muito mais de falar em português, é uma língua mais engraçada. Só que a mãe também é muito popular em Inglaterra. Eles gostam muito dela.
Quando comecei a fazer o documentário comecei a fazê-lo para mim próprio. Fiz este filme para conhecer e entender a mãe melhor. Acabei por mostrar, pouco depois do início, à BBC, porque precisava de dinheiro para fazê-lo bem feito. E eles adoraram!
Gostaram desta ideia, então?
Sim. A minha mãe sempre foi muito reservada e as obras sempre foram muito misteriosas. Ver algo coisa assim, que dá um olhar mesmo sobre a mente da minha mãe, é algo especial para os ingleses. Para mim também, claro. Mas só por isso é que falámos em inglês.
Sendo a mãe uma pessoa tão fechada, por que é que acha que ela aceitou fazer este documentário, em que faz tantas revelações inéditas, sobre a sua própria vida?
Porque eu pedi. Tenho muito charme e ela não pode dizer 'não', às vezes. Somos muito amigos. E naqueles tempos estávamos mais perto. Foi numa altura em que estava a fazer um negócio para a "Casa das Histórias", durante a crise, aqui em Portugal. Visitava a mãe todas as semanas e passava os sábados com ela. Discutíamos isto e aquilo, esta exposição, o que vamos fazer aqui e ali. Por vezes ríamos, às gargalhadas, e ficámos mais próximos. Depois, eu perguntava coisas sobre as obras e ela contava-me histórias que eu nunca tinha ouvido.
Houve alguma história que o espantasse?
Eu? Fiquei espantado com quase tudo!
Ela conta histórias incríveis e até, de certo modo, chocantes: a maneira como a mulher era vista em Portugal, a decisão difícil de ter a sua irmã mais velha, os abortos que fez, as relações extraconjugais. O Nick sabia disso?
Bem, as histórias que eu conhecia, conhecia de uma maneira um bocadinho diferente. E há muitas histórias desconhecia. Sabia que a mãe tinha feito um aborto ou dois, mas não sabia que era daquela forma tão frequente.
Quando a mãe fez as obras sobre o aborto, em 1998, ela disse que não tinha feito abortos. Ela fê-lo porque não queria que o público virasse as atenções para ela. Queria que as pessoas vissem as obras como se ali estivessem representadas as filhas deles próprios, as irmãs, as mães. Agora é um tempo diferente. Já estamos a viver num tempo mais civilizado. Temos clínicas próprias para fazer aquilo e é bom.
No documentário, a Paula diz que pode pôr, nas obras, todos os sentimentos. É interessante, porque chega a dizer que, num dos quadros que fez sentiu compaixão por Salazar, que era alguém que odiava.
Sim. É interessante. Isso quer dizer que não nos conhecemos a nós próprios assim tão bem. Com a arte a mãe podia descobrir coisas que não sabia. E é por isso que ela faz arte. Podia descobrir coisas que sentia. E isso aplica-se a quase tudo o que ela faz. É costume ela começar com uma história qualquer – que pode ser conhecida, como ‘O Crime do Padre Amaro’, ‘Peter Pan’ – mas ao fazer a obra a história muda. Por vezes ela não sabe onde vai parar, o que vai acontecer. De repente vê que tem uma memória de infância. E lembra-se de coisas que tem reprimidas. É a isso que chamo o segredo da pintura.
Como é que é a Paula Rego para lá da pintora? Como é que define a sua mãe, enquanto pessoa?
É uma pessoa que ri muito. Tem muita alegria. Quando estou com ela estamos sempre às gargalhadas. É alguém que gosta muito de histórias: de as ouvir e de as contar.
Daí o nome deste museu ser "Casa das Histórias"?
Sim. Porque todas as obras que faz contam histórias. E isso é o mais importante para a mãe. De resto, é alguém que adora cinema, que está interessada em tudo e também é uma pessoa que sofre de depressão. Sempre sofreu. Mas acho que é uma boa pessoa. É honesta, não tem feitios. A mãe nunca teve feitios.
Quando era criança, a mãe isolava-se para pintar. Não vos dava, a vocês, filhos, grande atenção.
E ainda hoje é assim. O mais importante para a mãe é a pintura. Era uma escolha entre o pincel e o bebé. E o pincel sempre ganhou, sempre foi mais importante. Percebi isto muito bem desde sempre. Agora, queria perceber as obras melhor, para entender porque é que eram tão importantes. Porque é que eram mais importantes do que eu. É irónico, porque agora sou eu que tomo conta das obras dela, neste museu (risos).
Em miúdo, estranhava esse comportamento da mãe? Sentia-se triste?
Claro! Eu gostava tanto de estar com a minha mãe. Não era tanto por ela estar escondida no estúdio. Era mais quando desaparecia para outro país. Quando ia viajar com o meu pai, desaparecia para Londres, e eu ficava com os meus avós no Estoril. E tinha saudades dela, e do meu pai também. Mas sempre foi assim, desde pequeno. Era assim.
Como é que olha para a história de amor dos seus pais?
É uma história… Eu tenho um bocadinho de ciúmes desta história. É de muito sofrimento mas de uma paixão muito intensa. E é por isso que tenho um bocadinho de ciúmes. Gostava de viver uma igual. Eles não só se entendiam um ao outro, como entediam as obras, os trabalhos. Discutiam o que estavam a fazer, o que era importante.
A relação dos seus pais começou de uma forma diferente do comum, porque o pai ainda era casado. A evolução também não foi a mais comum. Aliás, a dada altura a sua mãe diz que é possível amar uma pessoa, com a mesma intensidade, e ter outra, porque essa paga as contas. Isto choca-o?
Não. Eu também conheci o Rudy. Era um grande homem, fantástico. Gostava muito dele, tinha uma piada enorme. E a mãe teve muitos namorados depois de o meu pai morrer.
Mas este surgiu enquanto a mãe e o pai estavam casados.
Sim, mas a mãe teve muitos namorados enquanto estava casada com o pai. E o pai também.
Como é que encara isso?
Quando era pequeno não sabia. Eles eram muito reservados. Não hippies, não eram boémios, eram pessoas muito tradicionais. Portavam-se muito bem, eram muito bem educados. Mas é verdade que nesses tempos as pessoas também queriam fazer o "tarara" quando lhes apetecia. Tal como hoje… E não se diz nada aos pequenos.
Só soube agora das infidelidades dos seus pais?
Bem, algumas que só soube agora, sim. Quando no documentário se ouvem as minhas expressões de surpresa, é tudo real. Há muitas coisas que não sabia. Estou a descobrir a história da minha mãe ao mesmo tempo que o público.
Por isso é que lhe perguntei se ficou espantado com algumas das histórias.
Com quase tudo! Algumas sabia delas mas não da maneira mais real. A história do primeiro encontro com o meu pai. Lembro-me de ouvir aquela história de uma maneira diferente. De uma maneira mais romantizada. [Paula Rego e o marido tiveram sexo no dia em que se conheceram].
Não incluía a parte sexual?
Não de uma maneira que era violenta. Agora, foi a primeira vez que ela contou aquela história e eu percebi bem como foi aquilo. Fiquei muito chocado. Mas percebi, agora percebi. E naqueles tempos isso era mais comum. Os homens daqueles tempos portavam-se de uma maneira diferente.
É um começo muito abrupto e uma paixão que é toda ela assim. É um contínuo de paixão até ao momento em que pai parte.
Pois é. Se a mãe estivesse aqui e lhe perguntasse como é que recorda o Vic ela diria: 'Ainda sinto a mesma paixão que sempre senti. Tenho tantas saudades dele'. É o que a mãe diz sempre. E é por isso que há tantas obras que são sobre a relação deles. E a maneira que ela a sentia.
Houve uma que me deixou particularmente perplexa, em que a Paula descobre que o seu pai tem uma amante e coloca essa figura no quadro como uma imagem de mal.
Sim, como veneno! E depois a obra acabou-se mas ela estava a tentar castigar a namorada dele.
E ao mesmo tempo livrar-se da dor que sentia.
Exactamente! Queria vomitar o veneno. Estava tão aborrecida que queria vingar-se e tratar-se.
Desconhecia o lado mais religioso da mãe.
Incluí isso quase no fim do filme porque achei importante que o público percebesse a mãe muito bem. Depois de tudo, percebe-se que ela sempre foi espiritual.
Pois: é religiosa mas não o é no sentido de frequentar a igreja.
Não, não. Não gosta nada dos padres que castigam as mulheres. Ela acredita em Deus e na Virgem Maria. A Virgem Maria, para ela, é uma figura que alivia o sofrimento das mulheres, que foi algo que a marcou muito.
De facto, isso nota-se até na decisão de ter a primeira filha: a Paula tinha medo da mãe, tinha medo de ser recriminada em Portugal.
Sim. Naqueles tempos os pais educavam as crianças assim, de uma maneira ríspida. O médico disse-lhe que se fizesse outro aborto não poderia ter mais filhos. E foi isso que a levou a tomar a decisão de ter a minha irmã mais velha. Só tinha 19 anos.
Viveu em Portugal parte da sua infância. Que memórias tem desse tempo.
Nasci em Inglaterra, vim para Portugal com seis meses e vivi cá até aos 12 anos. Portugal é fundamental para a minha vida. Tenho vontade de estar cá, sinto-me mais à vontade aqui do que em Inglaterra. É verdade que em Inglaterra é mais fácil trabalhar, cá não se fazem filmes, não há dinheiro para isso. É por isso que estou lá.
Nessa época havia o Salazar, depois o Marcello Caetano. A vida era uma mistura. Vivíamos numa casa perto do mar, na Ericeira. Era uma grande libertação, no sentido mais fabuloso e mágico; uma infância mais mágica, não posso ter tido. Cresci numa quinta, sem sapatos, a correr nas florestas de eucalipto e pinheiros, a brincar… A matar dragões. Não tinha amigos e as minhas irmãs eram mais velhas. Naquela época, as raparigas não brincavam com os rapazes.
Era sozinho.
Mas não me importava, tinha uma vida fantástica. Mas ao mesmo tempo, lembro-me de Portugal como um sítio reprimido, em que as pessoas não podiam dizer ou fazer o que queriam. E em que a maior parte das pessoas era muito pobre e não sabia o que se passava. Era horrível, era um país fechado. É por isso que também adoro a União Europeia.
Porque é que acha que a mãe não foi incomodada pela ditadura, apesar de nunca ter escondido que odiava Salazar?
É um mistério. Se ela fosse poeta, se se exprimisse por palavras, as pessoas prestam mais atenção a isso e têm mais medo. As artes plásticas nem todos compreendem tão bem.
O pai deixou uma carta de despedida à mãe, que ela guarda muitas vezes junto ao coração. Por que é que ele fez questão de deixar essa carta?
Para ajudá-la. Ele sabia que ia morrer. Ele sabia que ela precisava de ajuda, que ficaria muito sozinha sem ele, e que ficaria aflita. Mas a maneira como ele escreveu a carta, muito simples, tem a ver com o talento do meu pai. Falava de coisas complexas, de forma simples e que todos percebiam. Por exemplo, quando ele escreve ‘The kids are great!’ há muito ali escondido. O que ele está a dizer é que ela não tinha que se preocupar com os filhos, porque iríamos estar bem. Para se deixar disso e se concentrar na sua vida.
O Nick sabia dos quadros que a mãe fez quando esteve num estado depressivo mais profundo?
Não. Ninguém sabia. Ela própria tinha-se esquecido. Foi a minha irmã mais velha, Carolina, que se lembrou daqueles tempos. Quando comecei a fazer o filme foi a minha irmã que me disse para lhe perguntar pelos quadros.
Aquelas obras foram uma forma que a Paula encontrou de aliviar a depressão?
Sim, claro. A mãe estava a tentar perceber melhor o que estava a sentir. Não era bem uma terapia, porque às vezes não funcionava. Era mais para continuar a mexer-se, a trabalhar, para não desaparecer. O trabalho é uma força vital para a mãe, ela sempre escolheu o pincel. Mas não tenho mágoa. Ainda fico admirado com as obras dela. São impressionantes.
Acha que a mãe, um dia, quererá vir definitivamente para Portugal?
O problema de Portugal, para ela, é que é um país cheio de fantasmas. E mágico mas de um encanto escuro. Não é só lembranças de infância e dos tempos que passou cá, com alegria, com o meu pai. Não é só isso: é medo.
Este país tem forças que ela desconhece. Em Inglaterra ela diz que não há fantasmas. É um país de lei e em que tudo é como deve ser, tudo está mais definido, não é preciso ter medo.
O Nick e a mãe costumam vir cá muitas vezes?
Eu venho uma ou duas vezes por mês, para tratar da "Casa das Histórias". A minha mãe não pode. O coração está muito fraco e eu tenho medo que ela se magoe. Não se trata só de se meter no avião, é também chegar cá, lembrar tudo, os fantasmas e poder sentir-se mal. E depois as pessoas à volta dela, que querem qualquer coisa, um bocadinho de cabelo, para levar para casa, e ela fica aterrada.
Tal como o seu pai deixou uma carta de despedida, acha que o facto de a mãe ter aceite fazer o documentário também pode ser uma forma de despedida?
Não! Acho que a mãe vai viver mais 50 anos e até fazer melhores obras do que tem feito! Pinta todos os dias, apesar de ter o coração muito fraco. Deita-se um bocadinho à tarde, para descansar, e está muito frágil. Tudo lhe dói. Tem dores terríveis. Ela viveu uma vida muito bem vivida, gostou muito do vinho português.
Mas causa-me estranheza ela ter aceite, por ser uma figura muito enigmática.
Por outro lado, acho que a mãe é muito inspiradora. E ajuda. Ela passou por muitos sobressaltos. É importante ver este filme. Mesmo que ajude só uma pessoa que sofre de depressão, já é bom. Ou se der força ao artista que está inseguro e não sabe o que fazer, também é bom. Se der força a uma mulher que os homens tratam mal, é bom. E é assim.
Como é que acha que a mãe é vista? Como uma mulher forte?
Nas obras é forte, mas na vida é frágil. A mãe é uma criança cheia de medo que tem uma coragem enorme nas obras mas na vida não consegue dizer ‘não’.