
Foi há oito anos que o maior esquema reiterado de engenharia financeira utilizado em Portugal levou à falência de uma das maiores e aparentemente mais sólidas instituições bancárias portuguesas.
No dia 3 de agosto de 2014, um domingo à noite, o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, alinhado com a política do Governo liderado por Pedro Passos Coelho, deixa cair o maior gigante com pés de barro da banca nacional. No dia seguinte, 4, o país acorda com Ricardo Salgado e toda a administração a serem escorraçados do banco.
Esta história fantástica, cheia de intriga palaciana e jogadas de veludo, deixou os portugueses estupefactos, principalmente aqueles que, dois meses antes da queda, aplicaram milhares, em alguns casos milhões de euros, das suas poupanças (como foi o caso da famosa apresentadora Teresa Guilherme, que investiu 2,35 milhões em papel comercial e ficou a ver navios), na subscrição de papel comercial, que redundaria no aumento do capital do único banco que se recusou a aderir à recapitalização ao abrigo da Troika de credores.
Havia uma razão para a teimosia do banqueiro Ricardo Salgado, ai havia, havia. Mas essa os portugueses só irão descobrir na manhã do "terramoto" de 4 de agosto de 2014.
RIVAIS ANDARAM A PREPARAR A CAMA A SALGADO
O ambiente dentro da instituição bancária andava a ferro e fogo desde, pelo menos, 2011, com vários elementos do Conselho de Administração a questionarem a liderança do temido homem a quem os funcionários chamavam "O Dono Disto Tudo" (DDT), embora nem o dinheiro dos depositantes, nem a totalidade do capital social da instituição fossem maioritariamente seus. Duas questões que o DDT contornaria com relativa facilidade, como iremos ver mais adiante nesta prosa, ao fazer a sua criativa engenharia financeira.
Ora mandava Ricardo Salgado naquilo tudo (entenda-se no BES e no seu braço armado empresarial GES – Grupo Espírito Santo – uma teia de empresas muito interligadas) quando um dos seus maiores apoiantes lhe retira o tapete. É verdade, o fim da velha aliança entre a Semapa (Celulose/pasta de papel) da família Queiroz Pereira e os Espírito Santo foi o princípio do fim da já fragilizada existência de DDT.
O corte ocorre no momento em que o multimilionário Pedro Queiroz Pereira parte a loiça toda e entrega ao Banco de Portugal documentos incriminatórios sobre o GES. Paralelamente, a sangrar com falta de liquidez, o BES usa o fundo Espírito Santo Liquidez para financiar não só o banco mas também as inúmeras empresas do grupo por onde se espalhavam membros do clã Espírito Santo e respetivas ramificações familiares. Um autêntico sorvedouro de fundos, sem fundo à vista, um verdadeiro buraco negro.
Com as sirenes de alarme a dispararem no Banco de Portugal, o regulador reage a passo de caracol e demora a estancar uma hemorragia que o banqueiro Ricardo Salgado se recusava a reconhecer, por se considerar infalível. Tal como Nero tocara harpa a assistir ao espectáculo da cidade de Roma a arder, Ricardo Salgado mantinha-se com cara de jogador de Poker no leme de um barco que se afundava a cada dia, agindo publicamente como se nada se passasse.
Só que, como em todas as famílias, há sempre alguém que tem a língua mais solta e, perante divergências constantes dentro do Conselho de Administração, o primo de Ricardo, José Maria Ricciardi, desafia o DDT. Aparentemente derrotado nas suas aspirações a conquistar o lugar do primo. A zaragata entre ambos torna-se pública, com Ricciardi a divulgar na comunicação social gravações das conversas tidas com o primo nas reuniões do Conselho de Administração do BES. Agora já não era só o Governo e o regulador Banco de Portugal que estavam em alerta.
As autoridades judiciais também ficaram despertas para uma alegada mega fraude financeira quase a explodir, podendo provocar danos irreparáveis na reputação de toda a banca portuguesa, dentro e fora de fronteiras.
NEM A IMAGEM DO CAMPEÃO RONALDO AGUENTOU O BES
O nervosismo reina em todos os quadrantes: dentro do banco, Ricardo Salgado, a mão que movia os fios de um negócio familiar que já tinha tido o jogador Cristiano Ronaldo como a sua imagem de marca, e sucesso, vê, em poucas semanas, a instituição perder metade do seu valor e o grupo empresarial desvalorizar mais de 70%.
Perante esta hecatombe, o DDT foi demitido a 4 de agosto de 2014 pelo presidente do Banco de Portugal, a família expulsa da instituição, tendo o regulador decretado de imediato o estado de emergência para evitar a implosão do banco, e que essa mesma implosão contagiasse toda a banca portuguesa, com aforradores e depositantes a sacarem as suas poupanças em pânico, afundando bancos que estavam em fase de recuperação depois do terceiro resgaste do FMI.
O que restava do BES estava mais furado do que um queijo suíço e o Banco de Portugal tinha entre mãos um bebé com uma fralda com um odor pouco recomendável. Escândalos fiscais. Acusações de uso de informação privilegiada em processos de privatizações. Ações do banco cotadas ao preço da chuva. Dívidas bilionárias no grupo empresarial. Escândalos em Angola. Escândalos no Luxemburgo, na Suíça, no Brasil...
José Maria Ricciardi, que tinha assento no Conselho de Administração do BES por conta dos 17,84% de capital do pai, o comandante António Luís Roquette Ricciardi, que faleceu em 2022 com 102 anos, tinha arquitetado uma guerra contra o primo, expôs muitos dos negócios menos claros feitos por Ricardo e a sua 'entourage', mas, além de ter sido meses antes, desautorizado pelo pai, então com 94 anos, que votou contra as pretensões de filho, viu o seu lugar no banco falido perdido.
O PRIMO DISCRETO E CALCULISTA. O PRIMO SNOB E INTEMPESTIVO
Os dois primos, que cresceram na mesma rua em Cascais, junto à Boca do Inferno -, que brincaram nas mesmas casas com mães reunidas a tomar chá e a jogar bridge,- cortaram relações por completo antes da queda final. Ricardo, já adulto, era visto por José Maria como sendo um tipo discreto, recatado e calculista. José Maria era, aos olhos do neto do fundador do BES, como sendo um tipo snob e intempestivo.
No final de todo este processo, acabaram ambos afastados da instituição que tinha sido fundada pelo pobre órfão José Maria do Espírito Santo Silva em 1869, então ainda enquanto casa comercial de lotarias espanholas, câmbios e títulos de crédito.
Ao fim de 145 anos, com estrondo, desmorona-se o império de uma das mais abastadas famílias portuguesas do século XX, aqueles a quem a imprensa chamou "os Rockefellers portugueses".