Os herdeiros do famoso pintor Piet Mondrian estão a processar o Museu de Arte de Filadélfia (PMA) alegando serem os legítimos proprietários da obra ‘Schilderij No. 1: Lozenge com 2 Linhas e Azul’ ou, como também é conhecida ‘Composition com Azul', datada do ano de 1926, por se tratar de uma peça saqueada pelos nazis durante o Terceiro Reich. A obra está avaliada em mais de cem milhões de dólares, de acordo com documentos apresentados em tribunal, cerca de 88 milhões de euros.
Assinale-se que os três queixosos não são descendentes diretos do artista natural dos Países Baixos, mas sim do seu melhor amigo, Harry Holtzman, também ele pintor e herdeiro direto de Piet Mondrian. Do lado oposto, o PMA, onde ‘Composição com Azul’ se encontra exposto há quase 70 anos, contra-argumenta que o artista neerlandês nunca demonstrou discordar do curso da obra. Mas afinal como surgiu toda esta polémica?
NEOPLASTICISMO E LOSANGOS
Pintada durante os anos em que Mondrian residiu em Paris, ‘Composição com Azul’ é uma obra numa tela com forma losangular. Acima do fundo branco estão duas linhas pretas perpendiculares – uma vertical e outra horizontal – com a área triangular entre a zona inferior à interseção e o limite da tela pintada a azul.
O estilo desta pintura é semelhante a várias outras da mesma era a partir da década de 1920, depois de trocar o impressionismo e o cubismo por aquilo que intitulava de neoplasticismo, baseado nas linhas horizontais e verticais e na utilização de cores primárias. O neerlandês usou as telas em losango – ou seja com uma rotação de 45 graus – por múltiplas outras ocasiões, como em ‘Lozenge: Planos Coloridos com Linhas Cinzentas, de 1919, ou ‘Composição Lozenge com Vermelho, Preto, Azul e Amarelo’, em 1925.
Já sem o losango, o mesmo estilo foi aplicado em 1930, quando pintou ‘Composição II em Vermelho, Azul e Amarelo’, que iria ficar para a história como uma das suas obras mais reconhecidas.
CONSIGNAÇÃO A SOPHIE E A ARTE DEGENERADA
Sophie Schneider era uma estudante de história da arte e colecionadora. Conheceu em 1911 numa associação de estudantes em Munique, de nome Corps Isaria, um outro estudante de história da arte, Paul Küppers, por quem se apaixonou e com quem acabaria por casar em 1916. Mas depois de, em 1922, Paul se ter tornado, de forma infeliz, numa das mais de 50 milhões de vítimas da gripe espanhola, Sophie voltaria a encontrar o amor no artista russo de origens judaicas, Lazar Markovich Lissitzky, conhecido no mundo da arte por El Lissitzky.
Ambos casaram em 1927 e mudaram-se para Moscovo, na altura pertencente à ex-União Soviética, não sem antes, no mesmo ano, ter sido a Sophie Lissitzky-Küppers, que se havia tornado uma reconhecida marchand d’art, que foi consignada a pintura ‘Composição com Azul’. Previamente a abandonar a Alemanha, deixou mais de uma dezena de quadros ao museu de Hanôver, entre os quais o de Mondrian.
#ElLissitzky #LaPedrera @catfundacio Photograph of El Lissitzky his wife Sophie Lissitzky-Kueppers and their child pic.twitter.com/Ea74kfJkRX
— S.Wallace (@WallaceFriul) October 21, 2014
O Terceiro Reich teve início em 1933 e a Alemanha Nazi, comandada por Adolf Hitler, decidiu deixar também a sua marca na arte, assinalando um conjunto de obras que consideravam ser ‘arte degenerada', por serem consideradas anti-alemãs, comunistas ou modernistas.
Neste âmbito, quatro anos depois, as obras que pertenciam a Sophie no museu de Hanôver seriam confiscadas pelos nazis, já quando Mondrian residia em Paris. Os quadros foram depois vendidos e acabaram espalhados pelo globo – ‘Composição com Azul’ foi adquirida em 1939 por Albert Eugene Gallatin à Galeria Buchholz, em Nova Iorque, parceira de negócios de confiança da Alemanha Nazi.
A AMIZADE COM HOLTZMAN
Gallatin expôs as obras de Mondrian que estavam em sua posse no Museu de Arte Viva, em Manhattan, nesse mesmo ano, entre elas ‘Composição com Azul’. Quando soube da exposição, Mondrian, na altura em Londres, terá, de acordo com o ‘New York Times’ endereçado uma carta a Gallatin congratulando-se: "Estou muito satisfeito por ter tido conhecimento da exposição que foi feita como meu trabalho e que o um quadro de Hanôver está tão bem colocado."
A chegada do pintor neerlandês à capital inglesa, a partir de Paris, teve como motivação escapar à perseguição por parte do Partido Nazi, que, como já foi estabelecido, não simpatizava com o seu estilo de arte. Posteriormente, mudou-se para Nova Iorque com a ajuda de Harry Holtzman, fundador do grupo de Artistas Abstratos Americanos e um grande fã do seu trabalho, que havia conhecido anos antes na capital francesa.
O norte-americano tornou-se uma das pessoas mais próximas de Mondrian, quer pessoal quer profissionalmente, e, aquando do falecimento desde devido a uma pneumonia, em 1944, tornou-se o único herdeiro das suas propriedades, até ao ano da sua morte, 1987. Pelo meio, em 1952, Gallatin havia deixado toda a sua obra ao Museu de Arte de Filadélfia.
Piet Mondrian and Harry Holtzman in Holtzman's studio. New York c. 1941 pic.twitter.com/OI1r4SpUFa
— gal debored (@ckayerawlings) January 27, 2018
OS ARGUMENTOS DO MUSEU E DOS DESCENDENTES
Regressemos ao presente, observando o esgrimir de argumentos entre o PMA e os descendentes de Mondrian. Numa declaração ao ‘ART News’, o museu alegou que, apesar de simpatizar com o retorno das obras saqueadas pelos nazis aos seus legítimos proprietários, não considerava que estas deveriam ser devolvidas aos descendentes de Holtzman, em representação da Elizabeth McManus Holtzman Irrevocable Trust, o nome da mulher do artista: "Apoiamos a devolução de arte saqueada pelo regime nazi aos seus donos, e inclusive já o fizemos no passado. Contudo, a organização privada que está a agir judicialmente contra o museu não tem um direito legítimo a reivindicar ‘Composição com Azul.'"
O PMA justificou ainda a sua posição: "Na verdade, o quadro foi comprado por A. E. Gallatin, um amigo do pintor, que, com o total conhecimento e apoio de Mondrian, o expôs publicamente. Piet Mondrian ter-se-á inclusivamente voluntariado a restaurar a obra para Gallatin e expressou um enorme prazer com a administração da mesma", tendo adicionado que irá "defender-se de forma vigorosa contra esta alegação sem qualquer mérito."
Os filhos de Holtzman – Madalena, Jackie e Jason – mostram, na sua queixa, ter uma opinião contrária: "Mondrian não estava ciente de que poderia recuperar a sua obra. De forma semelhante, Harry Holtzman também morreu sem saber que Mondrian e, por consequência, ele detinham o quadro", tendo apontado ainda para o facto de a apreensão ter sido ilegal, mesmo tendo em conta a lei vigente, que não contemplava pintores estrangeiros.
Esta, refira-se, não é a primeira ocasião na qual o trio reclamou ser o justo detentor de obras de Mondrian: em 2020, avançaram com um processo semelhante contra o Kunstmuseen, em Krefeld, cidade alemã situada perto de Düsseldorf, relativamente a outros quadros do neerlandês. Uma das obras de Mondrian, 'Tableau (Amarelo, Preto, Azul, Vermelho e Cinzento)', de 1923, está exposta em Portugal, mais concretamente no Museu Coleção Berardo, em Lisboa.