
Avelino Alves sabe do que fala porque já viu o melhor e o pior daquela família. Em 2000, a pretexto de substituir um padre que se iria retirar, começou a ser chamado para celebrar as missas na Capela privada da família Espírito Santo, em Cascais. Eram os anos de ouro do clã que já foi 'dono disto tudo', mas entretanto caiu em desgraça. Na primeira fila, sentava-se Ricardo Salgado, expoente máximo daquilo que a família tinha alcançado, o banqueiro a quem todos, da política aos mais diversos quadrantes da sociedade, se vergavam, o presidente de uma das maiores instituições bancárias em Portugal. Logo atrás, o Comandante Ricciardi, numa comunhão abençoada por um estatuto que ainda ninguém adivinhava ter os dias contados.
Da fé, das confissões que os foram unindo, dos momentos de dor e silêncio, também, nasceria entre o padre Avelino Alves e Ricardo Salgado uma amizade que, ao contrário de muitas outras, se revelaria à prova de desgraça, dos processos e da falência do Banco Espírito Santo. Hoje, o pároco é dos poucos que não se esgueiraram face à queda do BES, as agendas preenchidas como pretexto para ir deixando de aparecer. E, da sua posição privilegiada, viu tudo: as dinâmicas na família a mudarem, a traição entre primos, os amigos influentes a fingirem que, de repente, não conhecem o homem com quem, em tempos, dividiam jantaradas, viagens ao Brasil, dias na Comporta, onde se sentiam bafejados por aquela atmosfera de privilégio que as fortunas bancárias lhes granjeavam.
"Quando as castanhas caem todos são amigos, quando os castanheiros deixam de dar castanhas esquecemo-nos e isso é muito doloroso. A primeira grande dor que o dr. Ricardo Salgado tem é a de não conseguir resolver o problema dos lesados. E a outra é ser abandonado pelos amigos", revelou, numa longa conversa com a FLASH! na qual passa em revista os últimos anos de vida de Ricardo Salgado, mais do que o ex-banqueiro, um amigo que viu ter tudo e que agora é dono de nada.
Sem medo, aponta o dedo aos que o abandonaram, que retiraram a mão quando Salgado mais precisava, fala da família, que se desmoronou e enaltece o amor da única mulher que se manteve incondicionalmente ao seu lado: Maria João Bastos Salgado.
"Os grandes homens e as mulheres vem-se nas adversidades, nas dificuldades e ela mostrou que é uma grande mulher."
Da doença à família milionária que Salgado tem na Suíça, das guerras no clã àquilo que o ex-banqueiro ainda espera para o futuro, a FLASH! leva-o, ao longo de vários capítulos, nesta conversa com o padre de Ricardo Salgado, por uma vida de memórias, de dias dourados e riqueza até à queda bem lá de cima que deixou o clã, de um dia para o outro, como que sozinho no seu palácio.
"SE NÃO FOSSE A LUTA NA FAMÍLIA O BANCO NÃO TERIA AFUNDADO"
Quando começou a celebrar as missas na capela dos Espírito Santo, sem saber, Avelino Alves estava também a entrar no universo da família Espírito Santo. É apresentado a toda a gente, recebido com simpatia e Ricardo Salgado, que então se habituara a ver na televisão, quando os assuntos eram a banca portuguesa, parece-lhe surpreendentemente acessível.
"Eu tinha uma ideia de grandeza do homem e quando lá cheguei perto descobri a humildade do homem: humilde, discreto, simples. Claro que via que a gente que se aproximava, o tinham quase como um Deus. E eu tentei fazer com que as pessoas deixassem de olhar para ele como um Deus, como o senhor disto tudo e que o vissem pelo aspeto humano e cristão", conta, recordando que as missas eram celebradas tardiamente, às 13h00, algo que o surpreendeu. Só mais tardia viria a entender o propósito.
"Para nós é uma hora muito tardia. E eu punha-me a questionar: mas porque é que era tão tarde? Mas eles tinham alguma razão. A missa era das 13h às 14h e quando chegavam ao restaurante, às 14h30, já estava vazio e tinham mais espaço."
As missas na capela contavam também mais histórias do que se possa imaginar: em primeiro lugar a hierarquia do clã. Ricardo Salgado, todo poderoso, estava na primeira fila, logo atrás a família Ricciardi, numa espécie de 'degrau abaixo', que na altura ainda ninguém suspeitava que se viria a tornar num fosso gigante entre os dois lados do clã.
Para entendermos melhor a história, temos de olhar rapidamente para a árvore genalógica da família. António Luís Roquette Ricciardi casa-se com a única irmã da mãe de Ricardo Salgado, Vera, e dessa união nascem sete filhos, entre os quais José Maria Ricciardi.
Primos direitos, Ricciardi e Ricardo Salgado foram criados como irmãos, até a disputa pelo poder colocar um ponto final na fraternidade. Quando o BES cai, em 2004, o primo atraiçoa o banqueiro, denuncia as falcatruas, aponta-lhe o dedo publicamente. Na altura, Avelino Alves recorda que o mal-estar chegou às missas na capela, ao ponto de o padre ter sentido a necessidade de intervir.
"Chamei Ricardo Salgado à razão quando as coisas começaram a azedar com a família. Na altura, o comandante Ricciardi (pai de José Maria Ricciardi), que era uma referência e um homem com uma postura extraordinária, o dr. Ricardo não cumprimentou o comandante, que estava atrás, e eu dei conta. E quando ele passou pela sacristia eu disse: isso não se faz. Nós devemos cumprimentar até os inimigos, Cristo diz-nos que devemos amar até os inimigos, mesmo que não gostemos deles. Portanto, ele é seu familiar, é um homem bom, se calhar disse aquilo que o senhor não gostava, mas não pode ter esta atitude. E o senhor para vir à missa tem de cumprimentar toda a gente, senão não vem."
"O dinheiro separa-nos. Se não fosse esta rivalidade, esta luta de família,o banco não se teria, se calhar afundado assim tão rapidamente"
Perante a dureza das palavras, Ricardo Salgado remeteu-se ao silêncio. "Tinha a sabedoria de saber ouvir, era a coisa que eu mais admirava nele era ele saber ouvir. Não era um homem precipitado a responder, nunca se exaltava, nunca o vi exaltado."
No entanto, as duas famílias iriam separar-se para sempre. A paz estava irremediavelmente destruída por uma luta pelo poder da qual nenhuma das partes saiu vencedora. "O dinheiro separa-nos. Quando o barco é grande, toda a gente quer entrar no barco e eu penso que o BES era mesmo um grande barco onde toda a gente entrava. E foi como o Titanic, vai-se ao fundo. Quando é grande demais, o peso é muito e as dificuldades são muitas. Se não fosse esta rivalidade, esta luta de família, o banco não se teria, se calhar afundado assim tão rapidamente."
Segundo o padre, amigo de Ricardo Salgado, a solução poderia passar pelo genro do antigo banqueiro, Philippe Amon, casado com a filha Catarina dono de uma das maiores fortunas na Europa, devido à fábrica da família, que fabrica a tinta de segurança para as notas do mundo inteiro.
"Sabe que a maior dor que ele tem, ainda hoje, mesmo na condição em que está, ele diz-me sempre: ‘eu a maior dor que tenho é a dos lesados’, por aquela gente ficar sem a sua economia, tanto trabalhinho. Ele diz que é a maior dor que ele tem, porque ele disse: eu tinha solução para isso. Podia não ter para outros problemas, para esse eu tinha. E era provável que sim. Sabemos que a filha está casada com o Amon, não é? Ele tem a única fábrica no mundo, faz as notas do mundo inteiro, menos de um país que é o Botão. Podiam encontrar aí uma solução, mas não deram tempo."