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Os 'Ficheiros Secretos' de Mulder & Scully: 30 anos a acreditar que a verdade anda à solta por aí

Foi em 1993 que a série idealizada por Chris Carter se estreou na Fox. Desde então, Ficheiros Secretos transformou-se num programa de culto que marcou a história da televisão em todo o mundo, graças às personagens interpretadas por David Duchovny e Gillian Anderson, a famosa dupla Mulder & Scully. Três décadas, 11 temporadas e dois filmes depois, será que ainda vale a pena acreditar?
Nuno Coelho
Nuno Coelho
07 de setembro de 2023 às 22:23
"Ficheiros Secretos"
"Ficheiros Secretos"

Trinta anos. T-R-I-N-T-A. "Spooky" (assustador), como a alcunha de Fox Mulder entre os cadetes da Academia do FBI.

A 10 de Setembro de 1993, nos ecrãs de televisão dos Estados Unidos sintonizados na Fox, uma rapariga corria desesperada numa floresta do Oregon, antes de cair por uma ribanceira e um vulto enigmático se aproximar. A morte da personagem Karen Swenson acabava de a tornar na primeira a ser investigada por uma parceria muito especial. E a incógnita Laura Lee Connery a primeira cara (não creditada, ainda por cima – nem sequer era atriz, mas sim dupla) a aparecer em Ficheiros Secretos. Ou X-Files. Que teria 11 temporadas ao longo de 25 anos, num total de 218 episódios e duas longas-metragens, além de outros tantos spin-offs ('Millennium', entre 1996 e 1999, e 'The Lone Gunmen', em 2001 – ambas fariam um "crossover" com a série-mãe para fechar as contas). No total, o correspondente a, mais coisa menos coisa, 111 jogos de futebol, que é aquilo que quem queira gastar, hoje em dia, para ver toda a saga protagonizada por Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully (Gillian Anderson) em modo "binge watching" (que é como quem diz "ver tudo de enfiada" - para tal terá de ter o canal de streaming Disney+ ou então, tentar arranjar os DVD/Blu-ray, sendo que as duas últimas temporadas, de 2016 e 2018, já nem foram editadas nesse formato em Portugal).

Três décadas depois do seu início, a série que começou por ser filmada em Vancouver e se tornou de culto, marcou a cultura popular do final do século XX e consegue sobrevive bem à passagem do tempo. Ainda é bastante agradável de seguir – se se conseguir ignorar o facto de, face aos acontecimentos dos últimos anos, ser um verdadeiro ninho de teorias de conspiração –, sobretudo até à quinta temporada, à qual chega num claro crescendo culminado na primeira longa-metragem. Não por acaso, depois de se ter estreado no "slot" das sextas às 21 horas, passou para um mais nobre horário aos sábados (a partir do quarto episódio da quarta época) e domingos (da quinta à nona).

Em Portugal, coube à TVI exibir, a partir de 1994, as peripécias dos agentes do FBI - as derradeiras temporadas, já noutra época (2016 e 2018), passaram no cabo na Fox e a RTP Memória pegou na coisa em 2015. É estranho pensar agora que nesse tempo em que não havia box, nem "recuar no tempo", nem gravações automáticas – quem queria muito ver ou ficava em casa à hora da transmissão ou munia-se de uma cassete VHS (pois, uma peça de arqueologia para quem não viveu esses dias) e deixava a gravar, "rezando" para que o horário coincidisse e não faltasse a luz. Nos EUA, no entanto, a internet já tinha alguma utilização e no final de cada episódio os fãs da série iam a correr para os chats comentar o que acabara de acontecer.

"Eu dizia às pessoas que queria fazer uma série assustadora. Lancei a ideia duas vezes e só aceitaram o conceito à segunda tentativa. Era algo nunca feito em televisão e eles [os executivos] não sabiam o que que fazer com aquilo. Acabámos por fazer tudo bem na primeira temporada, tomámos todas as decisões certas e foi a fundação em que construímos o resto da série", afirmou Chris Carter, o criador de "X-Files", no documentário que acompanha a edição da primeira temporada em DVD (tão antiga que o formato televisivo ainda era o 4:3, só passando a 16:9 a partir da quinta).

Ficheiros Secretos
Ficheiros Secretos

Curiosamente, Carter nem sequer era um fã assumido de ficção científica – antes um licenciado em jornalismo que trabalhara 13 anos na "Surfing Magazine" antes de chegar ao mundo da televisão através dos estúdios da Walt Disney – e apenas lera de passagem um romance de Ursula K. Le Guin e outro de Robert Heinlein (autor de "Um Estranho numa Terra Estranha", uma das obras de culto do género). Já o seu amigo John E. Mack, que descobrira que três por cento da população dos EUA acreditava ter sido abduzida (ou seja, raptada) por aliens, teve obviamente grande influência na série que iria criar com tanto sucesso. Não por acaso:  Clinton era presidente (tal como Bush,  Obama e Trump vai aparecendo no "cenário" ao longo da série) e viviam-se os anos de ouro da humanidade, nos quais tudo parecia possível, pelo menos até as Torres Gémeas cairem (a 11 de setembro, oito anos e um dia depois da estreia da série. "Spooky"...)  e, com elas, um pouco da magia que os espectadores de televisão viam em Ficheiros Secretos. Essa magia transformou-se em pesadelo num piscar de olhos e, naturalmente, as audiências cairam. Não só por isso, mas também por isso. O mundo não mais foi o mesmo.

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MONSTRO OU MITOLOGIA?

Num episódio-piloto ainda sem o genérico que acabaria por se tornar famoso juntamente com os sons "extraterrestres" imaginados pelo compositor Mark Snow – em 1996 a série daria origem a um CD, "Songs in the Key of X", com músicas de Nick Cave (duas delas antes da primeira faixa, era preciso recuar manualmente), Foo Fighters, Frank Black (dos Pixies), Screaming J. Hawkins, REM com William S. Burroughs, Sheryl Crow ou Elvis Costello com Brian Eno, entre outros, além de duas versões do tema do genérico –, acompanhamos então a chegada de Dana Scully à sede do FBI, onde é incumbida de fazer parceria com Fox Mulder e entregar às chefias relatórios sobre as atividades do seu colega. A um canto, o "Cigarette Smoking Man" (daqui em diante o "Fumador") acompanha a entrevista à médica.

Dividida em dois tipos de episódios, "Monstro da Semana" (com início e fim, sobre um acontecimento particular) e "Mitologia Alargada" (onde se narra a conspiração de um grupo, o "The Syndicate", uma espécie de governo sombra que pretende auxiliar a invasão alienígena), a série vai introduzindo uma panóplia de personagens: dos chefes manietados do FBI (sendo o segundo o ator James Pickens Jr., mais tarde da 'Anatomia de Grey'), ao diretor-adjunto Walter Skinner (Mitch Pileggi) por vezes cúmplice do duo outras nem tanto, passando por Alex Kricek (Nicholas Lea, parceiro de Mulder na segunda temporada, quando aquele é separado de Scully por se terem tornado demasiado perigosos, e se torna num dos vilões da série), pelo "Garganta Funda" (antigo colaborador do "Fumador" que vai revelando pistas a Mulder... até correr mal e ser substituído por X), os já referidos "Lone Gunmen" (grupo perito em teorias da conspiração que vai ajudando Mulder a investigar "por fora" aquilo que dá demasiado nas vistas), Marita Covarrubias (mais uma informadora e mais uma personagem "dupla") ou Diana Fowley (antiga namorada de Mulder e co-fundadora da seção "Ficheiros Secretos", interpretada por Mimi Rogers, ex-mulher de Tom Cruise). É aliás a entrada desta última em cena que faz Scully perceber que a parceria com Mulder é mais do que parece.

 

O AMOR ESTÁ NO AR

"Desde o início que tinha a certeza que Mulder e Scully não se deviam envolver romanticamente", afirmou Chris Carter. E tanto assim era que a personagem de Gillian Anderson tem um namorado, enquanto a de David Duchovny deixava a sua sexualidade entregue às revistas que mantinha escondidas no escritório ou no seu apartamento com o número 42 (relacionado com a obra "À Boleia pela Galáxia", de Douglas Adams, e que é a resposta, calculada por um supercomputador, "para o sentido da vida, do universo, e de tudo") - curiosamente, o ator acabaria, em 2008, por passar vários meses num centro de reabilitação a tratar o "vício do sexo", além de protagonizar a série "Californication".

Apesar do latente amor platónico entre os dois intervenientes praticamente desde o início, a entrada em cena de Diana Fowley acabaria por despertar o ciúme em Scully. E apesar da relutância do criador, o quase-beijo entre o casal no primeiro filme (Ficheiros Secretos: O Filme) conduziu a relação para outro caminho. A longa-metragem marca, aliás, o fim do tom sério e formal adotado nas cinco primeiras temporadas e fecha, de certa forma um ciclo: a sexta e sétima já exibem mais liberdade criativa (Duchovny chegou a ser argumentista, Anderson escreveu e realizou um episódio para "explorar o seu interesse no budismo e no poder da cura espiritual" - "all things", 7x17), dando-se ao luxo de brincar com a série "Cops" que acompanhava intervenções da polícia americana em tempo real ("X-Cops", 7x12) e, depois de muitos avanços e recuos, o primeiro beijo entre os dois surge no episódio "Millennium" (7x4).

Entre a racionalidade de Mulder e a religiosidade de Scully, acentuada pelo crucifixo que nunca tira –  "Razão e fé em harmonia. Não é por isso que funcionamos bem juntos?", pergunta ele no penúltimo episódio –, o final da sétima temporada marca uma nova fase com o rapto do primeiro (ela já o tinha sido nos primeiros anos). A partir da oitava, Duchovny passa a aparecer de forma intermitente e o papel principal passa para Robert Patrick (o segundo Exterminador Implacável, que interpreta John Doggett, um agente duro, cético e marcado pela tragédia, sem o sentido de humor de Mulder e contratado para o tentar encontrar), para desespero dos fãs, descontentes com a semi-ausência do protagonista. Anderson, com a sua personagem "grávida", remete-se a um papel mais secundário, e será Monica Reyes (interpretada por Annabeth Gish) a reconstituir a dupla, a partir da nona temporada, que termina com uma caça ao "Fumador", presumivelmente (alerta spoiler) abatido no fim.

DE JFK A LUTHER KING

Sendo o titeriteiro desde o início, o Fumador (um dos nomes que apresenta é Carl Gerhard Busch) é personagem central em Ficheiros Secretos - "Se as pessoas soubessem aquilo que sei, tudo acabaria por se desmoronar", admite -, mesmo que só apareça em 44 episódios (interpretado por William B. Davis, um cético que não acredita em aliens ou fenómenos paranormais).  A sua história é contada ao pormenor no sétimo episódio da quarta temporada, "Musings of a Cigarrete Smoking Man": filho de um espião comunista que acaba executado e cuja mãe, fumadora inveterada, morre com cancro de pulmão, é criado em orfanatos até se tornar militar. Na tropa é colega do "pai" de Mulder e é aí que é recrutado para uma nova existência, a de um homem na sombra que cumpre as mais sombrias ordens do poder escondido – como matar JKF (é no final do "serviço" que fuma o primeiro Morley, a marca fictícia de cigarros) e Martin Luther King (que tal para teorias da conspiração?) – até se tornar ele próprio a fonte de todo o mal, com o sonho escondido de ser apenas um escritor. Com o avançar da série, é ele que está por trás de quase tudo, manipulando toda a gente no sentido que mais lhe convém, incluindo. E, claro (novo spoiler), descobre-se que foi amante da mãe de Mulder. "Eu sou o teu pai", confessa-lhe, tal como Darth Vader faz a Luke Skywalker. Vilão até praticamente à última imagem de Ficheiros Secretos – num episódio cujo moto é "Salvator Mundi" -, o Fumador tem ainda mais segredos escondidos e volta"ressuscitado" nas duas últimas temporadas para mais revelações – não participa, todavia, no segundo filme "Ficheiros Secretos: Quero Acreditar", que mais não é que um episódio "Monstro da Semana" alargado.

Ficheiros Secretos
Ficheiros Secretos

UM REGRESSO POSSÍVEL

Há um episódio em que Dana Scully questiona: "A sério. Porque é que as pessoas continuam a ver uma série com 30 anos?". É uma boa questão. No caso de 'Ficheiros Secretos', há muitos motivos para isso, mesmo que o visionamento seguido deixe perceber as naturais falhas de argumento, a ginástica para acomodar situações inesperadas por acontecimentos externos ou o incómodo sobre a influência que teve nos teóricos das conspirações. O certo é que a série não ficou presa à época em que foi produzida e nela podemos acompanhar a extraordinária evolução tecnológica das últimas três décadas – mas não só. E além dos bons efeitos especiais, é sempre um ótima ocasião para rever alguns atores conhecidos em início ou final de carreira, como Jack Black, Giovani Ribisi, Lucy Liu, Martin Landau (no 2º filme), Burt Reynolds e Shia La Beouf, isto além de outras caras conhecidas de séries que acabaram por ter sucesso. E é importante referir o papel de Vince Gilligan, criador de "Breaking Bad" e "Better Call Saul" (os atores Bryan Carston, Aaron Pink e Michael McKean aparecem igualmente em Ficheiros Secretos), que depois de escrever o argumento de um episódio da segunda temporada foi praticamente o braço-direito de Chris Carter até ao final da nona: além de argumentista, assumiu os papeis de criador consultivo, co-produtor, produtor-supervisor, produtor co-executivo, realizador (de dois episódios), produtor-executivo e... o de responsável pelo falhanço de "The Lone Gunmen".

Mas a história pode não ter acabado em 2018, até porque, de certa forma, terminou com um final em aberto. Recentemente, durante as celebrações do 30º aniversário de Ficheiros Secretos, Chris Carter revelou que o realizador Ryan Coogler ("The Black Panther") estaria a pensar em fazer uma nova versão da série (em 2022, Duchovny não afastou a possibilidade de regressar, ao contrário de Gillian Anderson, ocupada com outros projetos incluindo "Sex Education"), algo que ainda não foi confirmado pelo próprio. Mas é, no mínimo, "spooky"...

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