
Já o ‘Chico Fininho’ de Rui Veloso "gingava pela rua ao som de Lou Reed’ e "as mulheres bonitas" dos UHF subiam a "Rua do Carmo" no Chiado; já a ‘Chiclete" dos Táxi se tinha transformado numa poderosa pastilha elástica para os ouvidos e não havia "menino ou menina" que não cantarolasse o ‘Robot’ de Lena D’Água, quando, em pleno 'boom' do rock português, cinco jovens músicos que já andavam debaixo de "fogo" com rótulo de "fascistas", que se vestiam de forma "estranha", empunhavam bandeiras com a cruz de Cristo e que, pretensiosamente para alguns, se intitulavam de Heróis do Mar, tomaram de assalto o país para falar de amor, como ninguém o havia feito até então.
NOTA: Esta entrevista foi publicada originalmente na The Mag by FLASH! a 17 de março de 2022.
E tudo mudou na musica pop em Portugal.
Os Heróis do Mar vinham de um inicio de carreira bastante modesto, com pouco mais de 10 mil cópias vendidas do primeiro disco, um homónimo, lançado em 1981 e que causara o desconforto da critica. Contas feitas, os números não davam sequer, na altura, para atingir um Disco de Prata. As referências nacionalistas criavam ódios e colocavam Rui Pregal da Cunha (voz), Paulo Pedro Gonçalves (guitarra), Pedro Ayres Magalhães (baixo), Carlos Maria Trindade (teclas) e António José de Almeida (bateria) quase como inimigos públicos.
Rui Pregal da Cunha ainda se recorda da noite em que entrou num restaurante em Lisboa e todas as mesas falavam de um texto que tinha saído no jornal ‘Sete’ sobre o grupo. "Era um artigo de quatro páginas que nos chamava de tudo, de fascistas a neonazis", recorda. Nessa fase a banda era boicotada nas rádios e nas discotecas, e "não conseguia tocar abaixo do Rio Tejo", lembra o músico. "Tínhamos dado quatro concertos em Lisboa, um em Leiria e o sexto e sétimo já em Paris", adianta. "Não deixa de ser curioso que enquanto em Portugal nos chamavam nomes, em França já diziam que éramos a melhor coisa que existia na Europa".
Rezam as crónicas que os jornais ‘Liberation’ e ‘Actuel’ haviam saído rendidos dos dois concertos que o grupo dera, em Março de 1982, no Rex, em Montmartre, classificando-os de "neo-românticos".
COMO NASCEU O 'AMOR'
Com Portugal cheio de resistências ao projeto Heróis do Mar e a mostrar-se difícil de conquistar, foi o produtor do grupo, António Pinho, que um dia desafiou os cinco músicos a fazerem algo de impactante, a que não desse para fugir ou ignorar. "Ele veio ter connosco e disse-nos: ‘Vocês precisam é de fazer um grande sucesso que cale esta gente toda", recorda Rui Pregal da Cunha. E foi assim que "em apenas 23 minutos" o grupo fez nascer 'Amor', uma das mais importantes canções da história da música portuguesa, aquela que "mudou tudo, que transformou a carreira do grupo e a forma como a pop passou a ser vista e editada em Portugal".
Com letra de Pedro Ayres Magalhães ‘Amor’ foi concebido por forma a tornar-se "popular e irrecusável, com palavras para partir o coração das meninas que eram o nosso target" diz o músico Carlos Maria Trindade.
"Gravado debaixo de um groove altamente dançável, que mais não era do que o resultado das muitas influências que tinham os vários elementos do grupo, ‘Amor’, rompia com as canções anteriores lançadas pela banda "mostrando a faceta mais comercial dos Heróis", refere o teclista. "Digamos que mostrámos ali outro lado de nós próprios, o lado de entertainers". A intenção estava bem definida: "Pôr Portugal a dançar".
Estávamos em junho de 1982 e os efeitos daquele ‘Amor’ não demoraram muito tempo a fazerem sentir-se nas vendas, na popularidade, nos concertos, em mais reconhecimento internacional e nas discotecas portuguesas que até então só passavam música estrangeira.
"Aquele foi o primeiro tema em português a chegar às pistas de dança. Foi o primeiro a conseguir rivalizar com a música eletrónica que se ouvia na altura", lembra Carlos Maria Trindade. "Chegava a passar várias vezes durante a mesma noite", garante Rui Pregal da Cunha, recordando que o tema já havia sido gravado em formato 12 polegadas (o chamado Maxi-single) "para poder rivalizar com os Michael Jacksons desta vida" e para os DJs não terem desculpas. "Eles diziam sempre que os LP's não tinham bom som". É que o Maxi single tinha a estria mais larga o que permitia que os graves fossem de maior qualidade, algo que era muito importante para as discotecas", explica Carlos Maria Trindade. "Nós tivemos um cuidado tão grande em fazer uma música elegível, que fomos ao ponto de fazer introduções, refrães, batidas e finais, só a pensar nos Djs e nas rádios".
E PORTUGAL COMEÇOU A DANÇAR...
Inevitavelmente os efeitos de tão grande ‘Amor’ fez-se sentir também nas vendas e nos concertos. O grupo que até então tinha-se ficado pelas tais 10 mil cópias do primeiro disco alcançou números inimagináveis em que nem os próprios acreditavam. "Vendemos oficialmente mais de 100 mil copias, mas à conta da pirataria que, na altura, havia e que devia representar para aí 60 por cento da música que se comprava, devemos ter vendido, na verdade, uns 300 ou 400 mil", calcula Carlos Maria Trindade.
Uma coisa leva a outra e os concertos começaram a multiplicar-se. "De repente tornámo-nos maiores do que o Tejo", ironiza Rui Pregal da Cunha que perdeu a conta ao número de concertos que os Heróis do Mar deram no período pós-‘Amor’. Alguns, no entanto, ficariam para memória futura: "Demos uma vez um concerto na Praça Bocage, em Setúbal, que aquilo foi tipo Beatles. Tivemos que fugir para a varanda da Câmara Municipal porque se não éramos devorados. Era tudo a querer rasgar-nos as roupas". Mas os tempos eram outros e os hábitos e costumes ainda se faziam notar.
Carlos Maria Trindade recorda que, nas cidades, eram "as meninas que enchiam as primeiras filas dos concertos e na província eram sobretudo os homens que apareciam. Estávamos a falar de uma altura em que as meninas, no interior, ainda não podiam sair de casa. Era outro país".
Numa fase em que ainda não existia a cultura MTV e os telediscos em Portugal eram gravados pela RTP, os Heróis do Mar acabaram por ser convidados pelo canal publico para gravar um videoclip que viria a tornar-se icónico, filmado no Castelo de Sintra. Até nisso, o grupo seria inovador, uma vez que não era muito comum gravar em monumentos nacionais.
"Era uma ideia que vinha no seguimento da epopeia dos descobrimentos, dos castelos, das cruzadas, que era algo que tínhamos alimentado muito no primeiro disco. Por isso acabámos por retratar essa ideia no teledisco aparecendo entre as ameias do castelo e em poses de conquista e glória, o que, na altura, nem foi muito bem visto", conta Carlos
Maria Trindade. "Naquela época não se gastava dinheiro em telediscos. A RTP é que tinha um programa chamado 'Viva a Música', que era basicamente a passagem do top 30 e quando eles percebiam que havia uma música a entrar para o top propunham a gravação", explica Rui Pregal da Cunha.
Enquanto as discotecas em Portugal punham a tocar os Heróis do Mar ao lado de bandas como New Order, The Human League, Duran Duran, Spandau Ballet e muitas outras, o prestigio do grupo aumentava no estrangeiro, de tal forma que acabaria convidado a fazer a primeira parte dos Roxy Music de Bryan Ferry, em Paris.
"A Polydor França [editora] já queria editar o nosso disco por lá e quando o manager dos Roxy Music despediu os King Crimson da digressão surgiu ali uma oportunidade. Pelo que sei foi o próprio Bryan Ferry que disse: "Porque é que não convidamos os portugueses?", conta Rui Pregal da Cunha. "Estivemos uma semana em Paris, o que, na verdade, foi o regresso a uma cidade que já estava no nosso eixo de expansionismo". Uma curiosidade: "Naquela semana lembro-me de ir às lojas à procura do nosso disco e encontrá-lo entre as danças e cantares búlgaras, metido no meio do folclore. Eram outros tempos".
Hoje, 40 anos depois, ninguém tem dúvidas que o ‘Amor’ é uma das canções obrigatórias do cancioneiro pop nacional. Ajudou a desbloquear preconceitos, introduziu novas palavras e ideias no léxico pop do inicio da década de 1980, levou a criar um mito e lançou os Heróis do Mar para a imortalidade da história da música portuguesa embora outras grandes canções do grupo se tenham seguido como ‘Paixão’, ‘Inventor’, ‘Supersticioso’ ou ‘Só gosto de Ti’.
Para Carlos Maria Trindade os Heróis do Mar ficaram "como uma marca até aos dias de hoje funcionando quase um mito" e Rui Pregal da Cunha lembra que a estética e a sonoridade do grupo veio a inspirar vários projetos até à atualidade, como por exemplo a editora ‘Amor Furia’ fundada em 2007 e que já lançou Manuel Fúria, os Golpes, os Velhos, Capitães da Areia e muitos, muitos outros. "Abrimos de facto um precedente na música portuguesa e trouxemos algo de novo. Ainda me lembro que quando acabámos de gravar ‘O Amor’ olhámos uns para os outros e dissemos: Isto está mesmo bom, cumprimos a nossa missão", remata Carlos Maria Trindade