
Em primeiro lugar, a ressalva: não sou das que apregoam que devemos dar primazia aos autores portugueses só porque partilhamos com eles esta coisa da portugalidade, até porque os livros são caros e há sempre um mundo de escolhas para fazer. É mais um e também, um, se puderem, leiam também autores portugueses, porque a verdade é que quando os livros são bons chegam a lugares cá dentro que dificilmente vozes mais distantes conseguiriam fazer.
Um bom exemplo: o último livro da Susana Amaro Velho, 'Descansos'. Já tinha lido duas histórias desta autora e as experiências positivas fizeram-me ir à terceira, esperando que fosse algo dentro do mesmo registo, mas na verdade superou todas as minhas expectativas.
Comecemos pelo livro e por um breve resumo do que por lá acontece. A mãe de Laura morreu, o que a obriga a voltar à vila onde cresceu, e da qual se desenraizou há mais de uma década. Para trás, deixou toda uma série de acontecimentos de má memória, uma tragédia familiar que levou à morte da irmã mais nova e tudo aquilo que quem sai obrigada, à pressa, não tem tempo para resolver. O regresso obriga-a, por isso, a mexer em assuntos que queria encerrados, a enfrentar pessoas com as quais deixou todas as conversas a meio, a reatar laços de família que julgava para sempre desfeitos e a enfrentar no fantasma da mãe tudo aquilo que não disse nem nunca chegou a saber.
Na prática, temos aqui duas personagens muito fortes: a Laura e a mãe, que já está morta, mas a parte mais interessante é que o livro não é um ping pong entre as duas mulheres. Vamos entrando no seu universo através dos muitos outros habitantes da vila que, além de nos contarem a sua própria história - todas com um propósito, todas marcam - nos mostram as diferentes perspetivas de Laura e Ivone, de como ninguém é só bom ou só mau, como um mesmo acontecimento pode ser visto por uma pessoa de uma forma e pela que está ao lado de outra.
E, acima de tudo, faz-nos mergulhar num universo que eu, particularmente, adoro, nas personagens que habitam o nosso Portugal rural, de como o tempo pára, muitas vezes, nas nossas vilas e aldeias, de como o luto é uma coisa que se tem de carregar, de fora para dentro, de como as mulheres, se não ousarem, se arriscam à vida do lava-seca e passa a ferro, dos laços que se criam na pacatez da vida, nos dias de ócio, mas em que há sempre tanto por e para fazer, e dos mexericos que circulam a uma velocidade contrária ao ritmo de vida das mais pequenas localidades. Tudo isto escrito de uma forma muito própria, que não pretende copiar nem ser igual a ninguém, que prende, que cativa, cada frase a honrar o nosso português, belo, mesmo num estilo que, por vezes pretenda soar a tosco, a usar as expressões em que todos aqueles que cresceram longe das grandes cidades ou, de quando em quando, vão 'à terra', percebem, se reveem.
" — Ainda apanha os ovos diretamente do cu das galinhas?— perguntou Laura, entrando na cozinha cheia de um sol dourado que tornava amarelados os móveis.
Luz virou-se. Tinha tentado esquecer que Laura dormira ali, mas era impossível. A sua sagacidade continuava a mesma.
— E esfolo coelhos, se for dia de coelho à caçador.
— Ufa, assim fico mais descansada. Deus nos livre de ir ao talho"
'Descansos' traz-nos esse lado, por vezes quase cómico, da vida nas nossas aldeias, mas depois tem a profundidade que nos deixa a pensar em como as particularidades dos dias nos toldam, na aleatoriedade, em como se tivéssemos ido por ali tudo seria diferente. No 'e se, e se, e se', ao mesmo tempo que é um alerta para que vivamos no presente, não deixemos que a vida nos passe ao lado, porque quando esta vira já não vale a pena chorarmos sobre o leite derramado.
"Perceberia, da pior maneira possível, que ser feliz era apenas isso: existir na pequenez mundana dos dia, mesmo que todos eles lhe parecessem iguais"
O livro de Susana Amaro Velho faz-nos sentir o luto das perdas, mesmo que ainda não as tenhamos vivido, ir até esse lugar escuro que não justifica tudo mas nos faz entender melhor o porquê de certas atitudes, de certas coisas, a constatação de como as feridas abertas nos podem levar a condições bem piores, se só lhes pusermos um penso, e refletir sobre os laços, familiares, de amizade e tudo aquilo que nos une e separa dos nossos.
Sabem quando acabam um livro, fecham a contracapa, mas não o pousam, em vez disso ficam a olhar para ele e pensar, em todas aquelas personagens que já são também um bocadinho vossas? Foi mais ou menos isso que senti.
Tenho a certeza que se houvesse um 'Deus dos livros', ele daria um empurrãozinho para que o novo romance da Susana Amaro Velho se tornasse no hype do momento. Não estando segura da sua existência, digo aqui que não se vão arrepender de o comprar: é seguramente um dos melhores romances que vão poder ler este ano.