
Fala-se que a paixão acaba e o amor não,
que estupidez,
a paixão é um amor mais quente, a parte mais quente do amor, o amor que queima, que tumultua,
e não deixa de ser amor,
ama-me no intervalo entre o tumulto e a paz,
amar é no buraco da agulha, no interior do caos,
e da calma,
não acredito num amor quieto, estático, incapaz de um laivo de insensatez, de um momento periódico de inconsequência,
o fim da inconsequência tem consequências trágicas, ficas agora a saber,
beija-me de língua antes que a paixão passe,
não deixes que ela vá,
com ela vou eu, completa,
preciso de falta de respiração, de borboletas na barriga, de uma forma de realidade forjada,
preciso que sejas a minha ilusão mesmo que sejas também a minha realidade,
o desmoronar da ilusão é um veneno sem antídoto,
preciso que me consumas sem moderação,
o moderado que se vá encher de moscas,
nunca um moderado mudou o mundo, nem mesmo o seu mundo, muito menos o mundo de quem o ama,
o moderado é uma tristeza,
o beijo sem sal, sem língua, o beijo por obrigação,
não me beijes como se estivesses a lavar a loiça,
beija-me com amor,
e com paixão, sempre com paixão,
como foi o teu dia hoje, meu amor?,
e ficamos nisto, numa reunião pacata de companheiros, parceiros de uma vida sem lume,
sem amor,
o amor é um céu instável, de sol e de nuvens,
nunca um azul sem mexer,
que seca é um céu sempre azul, que porcaria é um casamento que se mantém sem nuvens,
são as nuvens antes e depois que dão ao sol a beleza que tem,
diz-me que me queres como um desgraçado, abraça-me com as mãos todas, aperta-me com o corpo todo,
deixa-me ser a tua mulher e não apenas a tua esposa,
entendes a diferença?,
eu entendo,
só não sei até quando te entenderei a ti.
*
Desculpa.
Estou a deixar-me vencer pelo cansaço. Pela falta de sono. Pela falta de mim no espaço dos dias.
A vida vai acabando quando deixas de a iniciar todos os dias como se fosse o começo. Porque é. Todos os dias são o começo da tua vida. Acordas todos os dias para o começo de ti. Ou então acordas todos os dias para o final de ti. Agora escolhe.
Desculpa.
Não sou capaz de ser o sonho que dissemos que seríamos — e que fomos, felizmente fomos, durante muito tempo. Agora sou um resto do que sou. Uma ausência de mim. Uma espécie de sucedâneo do que acreditei ser.
O sonho é escorregadio, fácil de perder. Para o segurar temos de ter mãos fortes, um coração vivo — e sobretudo uma atenção extrema ao lugar onde o guardamos.
Desculpa.
Deixei que o sonho que nos prometemos caísse. Uma vez, e outra. E outra. E com tantas quedas fomo-nos esquecendo do quão frágil ele é — do quão frágeis nós somos. Fui-me entregando ao quanto baste. Que abominação é o quanto baste, que merda é o quanto baste.
Desculpa.
Já não sei a que sabe o teu beijo. Não sei quando raios deixei de o querer inteiro, absoluto. Matamo-nos quando deixamos de nos dar vida. Amar é dar vida. Amar é sempre dar vida.
Desculpa.
Mas vou corrigir — vou corrigir-me. Já marquei a data para o final deste emprego que me afasta de ti — e mais ainda de mim. É uma decisão inconsequente, eu sei. É uma criancice, talvez: onde é que já se viu abandonar um emprego de tanto tempo sem ter sequer outra saída à vista? Mas tem de ser. Temos de ser. Estou a ver-nos desaparecer.
Desculpa.
Depois vamos ser só nós. Depois hei-de encontrar outro caminho. Outra solução. Havemos de sobreviver desde que nos tenhamos juntos para viver. Tudo em nós passou. Menos nós.
Desculpa.
E até já.