
"Vou ali e já venho" é uma frase que nunca mais será dita da mesma maneira. Vais aonde? Fazer o quê? Não sabes que não se deve sair de casa a não ser para ir ao médico, abastecer o carro, comprar bens essenciais, ir ao banco ou dar assistência à família?
- Nada disso, vou só ali ao paredão esticar as pernas e respirar o ar do mar, enquanto não fica interdito. O ar do mar ajuda a salvar o corpo e alma - concluiu a Maria, que se instalou temporariamente cá em casa paraatravessarmos juntas o período incerto de quarentenaautoimposta.
Tenho 44 anos e herdei um andar no Dafundo, perto da estação. Era a casa dos meus avós, como sou filha única e neta única do lado da minha mãe, ela ofereceu-mo quando me licenciei. Agora estou fechada em casa como o resto do mundo e dou aulas aos meus alunos pelo computador. Sou professora de português, nunca casei nem tenho filhos, só dois gatos, o Picasso e o Matisse, irmãos de ninhada adotados. Picasso é listrado e brincalhão, Matisseé preto e introvertido, cada um tem o seu feitio, um é mais cão do que gato. A Maria, que é mais nova do que eu,nunca casou nem tem filhos, gosta de dizer que eu sou o listrado e ela é o outro. De facto, existem algumas parecenças, a Maria tem o cabelo preto, liso, comprido e muito bonito e eu faço madeixas desde os trinta. Quando os cabeleireiros reabrirem é que vamos saber quantas loiras verdadeiras existiam em Portugal. Não sou uma delas.
Comecei a fazer-me loira depois de ter vivido três anos com o Filipe que era um tipo calado, talvez um pouco depressivo, embora cortês e sorridente, jogava na linha do Homem Tranquilo. O Homem Tranquilo é aquele tipo de homem que nunca perde a cabeça. Não sou de ligar a signos, mas parece que os homens do signo Caranguejotendem para o sossego do lar, por contraponto aos do signo Sagitário querem é andar no laré, usando uma expressão muito repetida pela minha avó Joana, quando se referia ao meu avô que saía para dar um volta e às vezes demorada s três dias a voltar. O Filipe era outro estilo, fugia para dentro. Sempre que era invadido por dúvidas amorosas ou metafísicas – dado o seu elevado nível de introspeção penso que seriam a mesma coisa – sentava-se noutro sofá que não o habitual e ficava ali, feito estátua, com os olhos fixados na vista de mar até eu o conseguir arrancar da tristeza e do marasmo na qual se deixava engolir. A tristeza é irmã do medo e o medo é a maior baleia do mundo, uma baleia assassina que mata a vontade, o otimismo e o desejo. Quis a sorte que essa baleia nunca me tenha apanhado, nem tao pouco à Maria, que consegue processar um desgosto de amor em 24 horas e continuar a avançar sem medo pelo labirinto das relações amorosas em que o mundo se transformou. Anda tudo no limbo do mais ou menos, e eu já encostei à box, mas a Maria vai fazer 35 anos, é bonita e tem um corpo de sereia, tem mais é de aproveitar a vida.
- Não queres vir comigo? Fazia-te bem, apanhavas um bocadinho de sol, a vitamina D protege-nos do mundo, diz-me a minha amiga que podia ser atriz de novelas ou apresentadora de programas de televisão e que prefere gerir apartamentos de outras pessoas. São seis da tarde, daqui a pouco o sol vai-se esconder, calço uns ténis e uns calções e saímos as duas.
- Nunca me constaste porque é que te separaste do Filipe – questioa-me, sem fazer usos da entoação interrogativa, depois de alguns minutos de caminhada silenciosa.
- Na verdade não sei bem. Eu gostava dele, mas não aguentava aquela tristeza sistemática, sou como um cão, os meus humores copiam os do meu dono, aquilo estava a dar cabo de mim.
- E não tens saudades?
Saudades temos sempre, pensei eu, sem nada dizer. A saudade é o que fica quando tudo acaba. Já foi há mais de dez anos e ainda viro a cabeça quando passo por um homem na rua que usa o mesmo perfume. Mas o melhor é nem falar nisso, é melhor não dizer à Maria que isto foi sempre piorando, que o Filipe era espetacular, eu é que não soube vencer os seus defeitos e que o amor é isso mesmo, vencer os defeitos do outro com a nossa tolerância e paciência, as mesmas que esbanjamos nas amizades verdadeiras. Agora sou uma quarentona que vive com dois gatos e que tem sempre a cama do segundo quarto da casa pronta para receber um amigo. Fomos ali é já voltámos, mudo a areia aos gatos e ponho-me a cozinhar o jantar.
Se não fossem os amigos, o que seria de nós?