
Os americanos chamam-lhe a leap of faith. Muitos anos em colégios ingleses fizeram de mim um recitador involuntário de expressões anglo-saxónicas. A leap of faith. Saltar para o desconhecido, guiado pela luz da fé, amparado pelo para-quedas do optimismo. A Matilde deve saber como se faz, nunca tem medo de nada, se existe alguém com quem poderia dar o salto, seria ela.
Gosto de todo o tempo que passamos juntos e toda a gente sabe que quanto mais anos passam, mais difícil se torna o entendimento. Quando a tarde cai e nos sentamos numa esplanada a conversar, penso que também seria interessante sermos apenas amigos. Em teoria é tudo muito fácil, o pior é aguentar. Assim que ela me dá um beijo, ou faz um gesto qualquer mais terno, o meu coração dispara e todos os sentidos se acendem. Não sou dado a demonstrações públicas de afeto, mas com ela não me importo; agarro-a sempre que me apetece e quando me dá a mão na rua, deixo-me ir.
Eu podia dar uma volta à minha vida e ficar com ela, em vez de regressar a casa ao fim do dia, preparar uma bebida e ficar-me por ali, a desligar devagar, graças ao torpor leve e lânguido que o álcool provoca. É tudo suave, e no entanto, letal. Beber todos os dias um ou mais copos, sejam umas cervejas na rua ou um uísque em casa não vão fazer de mim um alcoólico, mas também não me faz bem. Devia voltar para o ginásio, ou correr junto ao rio, já que estou tão perto. Em vez disso, sou dominado pela inércia, com o olhar colado à nesga de vista que o terraço do último andar me proporciona.
Não tenho a certeza se gosto ou não deste apartamento, se o bairro é ou não simpático, Alcântara nunca esteve na moda, pelo menos isso é bom. Quando dou as minhas voltas por aqui não encontro caras conhecidas, para o meu feitio fechado, é uma paz. Na parte de cima, junto à Igreja, onde vivo, há mais luz, as ruas estão mais limpas. Mas é um bairro triste, como todos os bairros de Lisboa, ou são melancólicos ou estão invadidos de turistas, venha o Diabo e escolha. Nada contra o crescimento do turismo e bem da economia, sou sempre a favor do desenvolvimento do meu país onde tantas vezes me sinto um estrangeiro, mas esta descoberta mundial por Lisboa acentuou o meu feitio eremita. Prefiro mil vezes viver numa zona que ainda não está na moda do que sair à rua e não ouvir a falar português.
Quando vi a casa, gostei por ser muito diferente da minha antiga, num bairro onde nunca vivera e do qual não conhecia nada. Para recomeçar do zero, é preciso cortar com o passado, pelo menos naquilo que está ao nosso alcance. Mudar aquilo que conseguimos mudar até conseguirmos mudar o que ainda não conseguimos. Não sei o que vou conseguir nem quando, mas hoje quero chegar mais cedo a casa porque não vou ver uma série nem beber um uísque, hoje a Matilde vem ca jantar e pela primeira vez em muitos meses, vou cozinhar para duas pessoas. Lasanha assim será, com uma salada inspirada, como é a vida, quando um se obriga a começar do zero.