
Já passaram mais de dois anos que no cruzámos pela última vez. Foi no aniversário do Filipe, um almoço num bar de praia, no final do Verão, no início de Setembro, a mesma altura do ano em que nos conhecemos há muitos anos atrás. Eu levava um vestido às riscas azuis e brancas e o coração apertado, ainda em fase aguda de estaleiro.
No passadiço da praia, um amigo caminhava poucos passos à frente. Chamei-o para que esperasse por mim e entrámos juntos. Reconheci-te assim que cheguei, o mesmo cabelo sempre em desordem, os tornozelos inconfundíveis, o tom de pele mais bronzeado do que o habitual, o mesmo olhar distante e seráfico por detrás dos Ray-Ban vintage, a mesma postura corporal tímida e reservada de quem está sempre a assistir ao curso dos acontecimentos através de binóculos. E claro, uma camisa de flores estampada, tão típica tua, sempre gostaste de camisas com flores, pequenas, de cores suaves, é a tua imagem de marca de Verão.
Não estava à espera de te encontrar ali, parece que és amigo – ou namorado, ou qualquer coisa parecida - de uma prima do Filipe. O meu coração disparou e a minha expressão deve ter-se alterado porque o meu amigo perguntou o que se passava.
- Está ali o meu ex. Aquele ex que te marcou para a vida, sabes a que me refiro?
- Claro que sei, já todos passámos por isso. – Respondeu.
Na verdade, quem não passou?
Fingiste que não me ver, senti-te em alguma tensão e esperei que viesses cumprimentar-me, o que não aconteceu. Horas mais tarde, quando a festa animou com música boa para dançar, vi-te ao longe, com um copo de rosé na mão a contemplar o Atlântico, afastado de tudo e de todos. Estava ali uma janela de oportunidade para chegar a ti. Do alto da tua fortaleza, baixaras a ponte levadiça e ordenaras aos guardas que abandonassem os seus postos de vigia. O caminho estava livre, por isso avancei. Na última mensagem que te enviara anos antes, sugerira um passeio na praia para sublimar a tua zanga. Aqui estava a oportunidade de o fazer.
Abriste o sorriso assim que me aproximei como se estivesses à minha espera e começámos imediatamente a conversar sobre as nossas vidas sem necessidade de nenhuma introdução para quebrar a distância. Foste vago em relação ao presente e ao futuro, mas estavas próximo outra vez e isso bastou-me como resposta. Mencionei o nome da rapariga que parecia ter vindo contigo, perguntei se era tua namorada. O teu Não imediato, acompanhado de um arquear de sobrancelhas a reforçar a resposta, não me deixou dúvidas. Somos amigos, remataste, e eu não aprofundei o assunto. Depois de um silêncio diferente dos outros perguntaste:
- Então e o resto?
- Que resto?
- Tu sabes, Mafalda.
- Nem imaginas, apaixonei-me por um homem muito parecido contigo, um bocado tímido e confuso como tu, de caracóis desarrumados e coração fechado.
- E então?
- Então, tive mesmo azar, as coisas não podiam ter corrido pior. – respondi com a verdade nas mãos, como quem carrega uma travessa de fruta fresca cortada aos bocados.
- Oh! Tenho mesmo pena querida, porque não conheço ninguém que mereça mais ser feliz do que tu.
E fitaste-me com toda a ternura de outros tempos, a mesma com que me olhavas sempre que saías para apanhar o avião. Por brevíssimos instantes estávamos outra vez no ano de 2005, nada mudara. Nada. Não consegui articular nenhuma resposta. Tantos anos de mágoa, de zanga, de amuo, de birra, tanto tempo do outro lado do muro, para afinal me dizeres com todo ao carinho que querias o melhor do mundo para mim. Devo ter sorrido, porque sorriste também.
Ficámos mais um pouco a olhar para o mar, duas vidas em paralelo que voltavam a cruzar-se por breves e preciosos instantes para assinar um tratado de paz há tanto tempo esperado. Agora só nos restava descansar os olhos no futuro, incerto e separado. Tudo o que era importante dizer havia sido falado, nada mais tínhamos a acrescentar. Percebi que chegara a hora de me afastar, os guardas voltaram aos seus postos de vigia, ouvi-lhes os passos decididos e sincronizados, em marcha de formatura. Em breve a ponte levadiça seria içada. A janela de oportunidade voltava a fechar-se.
Afastei-me com a mesma leveza com que me aproximara, voltaste para a tua fortaleza, cada um no seu mundo. Ainda estávamos no mesmo espaço, mas já não no mesmo lugar. E foi então que o sol se pôs o nosso último pôr do sol, como canta o Lenine.