Lembra-se de Gustavo Carona, o médico que emocionou os portugueses a combater o coronavírus? Saiba o que lhe aconteceu e como a covid-19 deixou marcas profundas nos profissionais de saúde
Esteva na linha de frente e deu a cara por todos os profissionais de saúde que lutaram ferozmente contra a pandemia. Numa entrevista emotiva à FLASH!, o médico fala sobre o que restou desta "guerra", as consequências que ficaram e a importância da preocupação da saúde mental destes guerreiros. Quanto a ele próprio, ainda precisa de tempo para se "reencontrar".
Gustavo Carona. 40 anos. Este é o nome do homem que teve uma das vozes mais ativas e dos rostos mais visíveis da linha da frente na luta contra a pandemia. Médico intensivista no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, já viveu momentos de profundo desespero e dor mais de dez missões humanitárias de que fez parte, mas nunca pensou viver um dos maiores dramas mundias: a pandemia causada pelo coronavírus.
Com Portugal e o Mundo em alerta máxmo em plano confinamento, Gustavo Carona participou num dos diretos de Bruno Nogueira de 'Como é Que o Bicho Mexe?' e, com um relato emocionante, fez emocionou o humorista e as mais 100 mil pessoas que assistiam ao arrepiante testemunho.
"Pensava que compreendia aquilo que de nada sabia. É importante que as pessoas vejam aquilo que se está a passar nos hospitais. Esta doença é muito silenciosa, difícil de compreender."
Estávamos no auge da pandemia e Gustavo Carona era apenas um dos rostos dos milhares de médicos que acusavam o cansaço extremo. Com horas infinitas de trabalho nos hospitais, centenas de mortes diárias e apenas um objetivo: a luta pela sobrevivência a quem neles depositava toda a fé e esperança.
"Os profissionais de saúde estão a sofrer", alertava. E agora, passado quase um ano e meio do início da pandemia em Portugal, Gustavo Carona afirma que os verdadeiros guerreiros desta batalha continuam a sofrer.
E agora? Quase um ano e meio depois? Como está Gonçalo Carona e como vê evolução da pandemia e das medidas tomadas para a combater? A FLASH! falou com o médico intensivista que afirma que ainda se está a encontrar depois deste cenário de guerra.
UM CANSAÇO EXTREMO E CICATRIZES PARA A VIDA
Foi no dia 2 de março de 2020 que se registou o primeiro caso de Covid em Portugal. Agora, aos poucos, os profissionais de saúde podem começar a respirar fundo, apesar da luta continuar e não haver um fim à vista. "O que vejo à minha volta é um grupo de pessoas que foi atingido pela pandemia. Muitos profissionais de saúde que viram a sua vida mais difícil mas imagino que não foram assim tantas as áreas como foram os Cuidados Intensivos onde trabalho. Aquilo que sinto é que as pessoas ainda estão bastante cansadas. Foram períodos muito difíceis fisicamente e emocionalmente."
As memórias de dias menos felizes vieram para ficar. Os dias de desespero, as horas de trabalho extenuante, mas marcas que ficaram para a vida. "Estas feridas deixam cicatrizes que ficam para a vida. Não se ultrapassa assim de um dia para o outro. Por um lado há uma realidade muito triste e muito intensa vivenciada nos hospitais. Por outro lado, a ausência de alegrias, de socialização, de vida familiar e profissional. Aquilo que nos protege como seres humanos teve condicionado para o profissionais de saúde. Foram vivências muito intensas e que não se apagam só porque as coisas estão um bocadinho mais aliviadas."
A IMPORTÂNCIA DOS AFETOS
Orgulho de toda a equipa com quem trabalha, Gustavo Carona afirma que tem "a sorte de trabalhar com pessoas extremamente humanas" e que isso não se alterou no meio do caos. No entanto, esta pandemia obrigou ao isolamento, onde os doentes não podiam ter contacto com as famílias a não ser através do telefone e que a necessidade de afetos cresceu substancialmente.
"Tornámo-nos mais susceptiveis àquilo que eram as emoções dos doentes porque elas também estavam exponenciadas pela carga de preocupação que as pessoas tinham em relação à doença, pelo que se via nos telejornais e pelo susto. Não vi nada de diferente do que é a prática clínica do sitio onde trabalho: são pessoas extremamente atenciosas, humanas e cuidadosas. A particularidade desta doença é que é muito lenta, não é normal haver períodos de internamentos tão longos. Por outro lado, há pessoas que estão em situações extremamente graves do ponto de vista respiratório e depois parece que todo o organismo não está afetado."
Este é um ponto a favor no que diz respeito ao quadro clínico do paciente mas, ao mesmo tempo, de uma angustia profunda. "As pessoas estão completamente conscientes, capazes de perceber o mundo à sua volta, o que é bom e mau. É bom que não tenham outros órgãos afetados mas é muito difícil de gerir estar 24 sobre 24 horas dentro de um quarto com vidros, onde as pessoas só lá entram todas equipadas… foi preciso ter um bocadinho mais de humanização dos cuidados por estes fatores. Mas acho que é apenas uma continuidade do que é a nossa prática. Foi especial mas apenas um continuar do que já estava a ser feito."
A FELICIDADE QUE DEMORA A SER RECUPERADA
O peso deste mais de um ano ainda está muito presente na vida de quem lutou para salvar o País. A ausência das reuniões familiares, a falta de tempo para estar com quem se ama, as mortes, o inferno que se vivia nos corredores dos hospitais que não tinham capacidade para acolher mais pessoas em situação limite. "Como profissional de saúde diria que houve momento em que nos sentimos encostados às cordas e a levar pancada. Isso demora muito a recuperar. Gostamos de viver de sorrisos, de alegrias e de leveza e esta realidade tirou-nos o que nos faz pessoas alegres. Esperemos que seja algo que se vai diluindo com o tempo mas no imediato ainda existem muitas nuvens negras na nossa cabeça", desabafa.
Afirma que não é qualificado para falar de saúde mental mas alienta a importância que esta pode ter depois de um impacto como a pandemia. "Os profissionais de saúde foram francamente afetados. Há estudos que apontam para cerca de um terço de pessoas que lidaram diretamente com a pandemia terem apresentado sinais de Burnout severo e isso não é um cansaçozinho. É destruidor no que diz respeito à nossas estrutura e à estabilidade emocional."
Quanto a si, Gustavo Carona afirma que "ainda é cedo para dizer o que mudou na minha vida." "Fiz o meu trabalho. Gosto muito da profissão que exerço e espero, obviamente, que a medicina e os Cuidados Intensivos deixem de ser um assunto nas notícias. É aquilo que todos nós desejamos.Tive desafios muito duros mas também senti, quer individualmente quer em grupo, um espírito de missão, de superação, vi pessoas muito estoicas à minha volta, absorvi grandes inspirações e são lições de vida e aprendizagens que demorarei algum tempo a mastigá-las e a interiorizá-las."
"Há estudos que apontam para cerca de um terço de pessoas que lidaram diretamente com a pandemia terem apresentado sinais de Burnout severo e isso não é um cansaçozinho. É destruidor no que diz respeito à nossas estrutura e à estabilidade emocional"
Mas nem só de pessoas bonitas se escreveu este caminho. "É típico das crises, seja elas quais forem, vermos o melhor e o pior das pessoas. Vi pessoas muito bonitas a serem incríveis e depois vi pessoas tristes a serem maléficas, causticas e acho que depende da capacidade de utilizarmos um filtro para olharmos para as melhores partes do mundo. No imediato ainda tenho algumas dificuldades, algumas dores, mas tentarei ser moldado pelo melhor que esta crise nos mostrou. A partir daí veremos o que é que fica."
Como sempre, o regresso ao normal depende de todos nós: "Não tenho nenhuma bola de cristal e qualquer processo de adivinhação é puramente especulativo mas é fundamental que as pessoas se continuem a vacinar."