Milton Nascimento despede-se dos palcos: a impressionante história do menino órfão da favela que virou um dos maiores de sempre
Aos quase 80 anos de idade e mais de 60 de carreira, Milton Nascimento vai deixar de fazer concertos. A digressão de despedida está em Portugal, país onde o músico diz que “tem uma parte” de si, e termina no sábado. É hoje um dos maiores e mais respeitados nomes da música brasileira, mas nem sempre foi assim. A favela, o abandono, a pobreza, o racismo, a doença, os desamores e o sucesso.
"Um adeus aos palcos sim, mas deixar a música jamais", esclarece Milton Nascimento logo no início da conversa com The Mag. "Esta é uma decisão que o meu filho Augusto e eu já estávamos amadurecendo há muito tempo. Então, agora foi a hora certa", diz. "Foi uma decisão tomada com muita calma". Depois de ter passado no dia 23 pelo Coliseu de Lisboa, 26 por Castelo Branco (Cine-Teatro Avenida), 29 pelo Porto (Casa da Música), Milton Nascimento leva o seu último concerto, 'A Última Sessão de Música', amanhã a Braga (Theatro Circo). "É um espectáculo que tem a direção musical do meu filho e que procura traçar um panorama de toda minha carreira. Cada disco que gravei tem um pedacinho neste concerto", diz.
De volta a Portugal, o cantor despede-se assim de um pais onde começou a fazer concertos em 1980 e do qual nunca mais conseguiu desligar-se. "É um dos lugares onde eu mais gosto de fazer show. Amo Portugal. É parte da minha vida, para sempre", declara. "E para além de ser um lugar do qual sou apaixonado, é também onde tenho grandes amigos, como Sérgio Godinho, Carminho ou António Zambujo. Enfim, sinto-me em casa todas as vezes".
DA FAVELA PARA O MUNDO
Foi numa favela do Bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde a miséria e a delinquência eram destinos quase certos para quem ali nascia, que veio ao mundo Milton Nascimento, a 26 de Outubro de 1942. À semelhança de muitos outros ‘favelados’, a sua história de vida também não lhe começou nada favorável. Ainda estava na barriga de sua mãe (uma empregada doméstica chamada Maria do Carmo Nascimento) quando o pai o abandonou (nunca viria a conhecê-lo).
Aos dois anos perdeu a mãe, vítima de tuberculose, tendo sido entregue aos cuidados da avó, também ela uma empregada doméstica que tinha que esticar o pouco que ganhava para dar uma vida minimamente digna ao neto. Algum tempo depois, no entanto, as dificuldades financeiras viriam a agravar-se e Milton acabaria por ser entregue pela avó, para adoção, a um casal recém-casado. Ela era uma professora de música que não conseguia engravidar e ele o diretor de uma rádio local. Começava assim a escrever-se o caminho de Milton no mundo da música. "A minha mãe adotiva Lilia, a quem eu chamava ‘Pietá’, não era cantora profissional, mas foi a primeira voz feminina que ouvi na vida e que influenciou toda a minha carreira", diz. É nesta fase da infância, que ganha o apelido de ‘bituca’ (pelo qual ainda hoje é tratado) por fazer um beicinho/biquinho com a boca de cada vez que era contrariado.
Foi já a viver em Três Pontas, município de Minas Gerais (sudeste do Brasil), para onde se mudou com os pais adotivos, que começou a cantar. Aos 13 anos já era a voz principal de um grupo de música de baile. "Ainda recordo bem esses meus tempos de crooner, no Sul de Minas Gerais, junto com o meu amigo Wagner Tiso", recorda à The Mag, garantindo que o gosto que tem hoje "pela música é exatamente o mesmo dessa altura". Mas foi lá também, em Três Pontas, que sentiu, pela primeira vez, o verdadeiro peso da descriminação racial, quando começou a ser impedido de entrar nos clubes da cidade por causa da cor da sua pele. Reza a história, que o pai adotivo chegou, um dia, a ter de puxar de uma arma para o defender. Ainda começou a estudar economia e até trabalhou num escritório de contabilidade, mas os números e as contas haveriam de ficar pelo caminho.
Em 1966, já depois de se mudar para São Paulo, conheceu Elis Regina, que gravou ‘Canção de Sal’, transformando-se na musa inspiradora e intérprete favorita de Milton. "Foi ela que me lançou na música", diz. A relação artística entre os dois foi tão forte que a cantora viria mesmo a tecer um dos maiores elogios alguma vez feito ao músico: "Se Deus tivesse uma voz, seria a de Milton Nascimento". Também Vinícius de Moraes, que conheceu o cantor quando este tinha apenas 24 anos, viria a referir-se a ele como "um jovem mais propenso a ouvir do que a falar, que desponta como uma das maiores expressões renovadoras da música brasileira".
Ao longo da carreira, Milton cantou em alguns dos maiores palcos do mundo, escreveu para outros artistas e fez parcerias com artistas como Wayne Shorter, Pat Metheney, Bjork, Peter Gabriel, Caetano Veloso ou Gilberto Gil. Escreveu bandas sonoras e musicais infantis e integrou alguns dos mais icónicos projetos musicais brasileiros como o Clube da Esquina. Toca violão, acordeão, contrabaixo e piano. Gravou mais de 30 discos e ganhou cinco Grammy. "Sou feliz e realizado com tudo que a música me deu. Não posso reclamar de nada! Tudo o que sou, devo à música", diz.
UMA VIDA SENTIMENTAL ATRIBULADA
Mas se a vida artística que construiu é hoje intocável e irrepreensível, já a sua vida sentimental e amorosa, nunca correu de feição. Casou pela primeira vez em 1968, mas o casamento não duraria mais de um mês. Teve vários relacionamentos, entre os quais um namoro muito badalado com uma socialite paulista chamada Karita. As desilusões amorosas acabariam por levá-lo a passar os assuntos do coração para segundo lugar a fim de apostar na carreira. Optou por viver sozinho e não voltar a casar nem ter filhos, mas em 2005 decidiu adotar o seu único filho Augusto, quando este tinha 13 anos (o menino não tinha uma boa relação com o pai biológico e Milton perguntou-lhe um dia: "Queres ser meu filho?").
Augusto é hoje o maior confidente de Milton, o seu braço direito, empresário e a pessoa que gere a sua carreira. Mas a relação entre os dois chegou a dar azo a comentários perversos. "As pessoas são tão maldosas que queriam romantizar nossa relação depois que aparecemos como pai e filho", desabafou Augusto ao jornal ‘Globo’. "Teve uma altura em que as pessoas quiseram erotizar o que a gente tinha um com o outro. Mas também chegou o momento em que eu disse: 'Dane-se!'. Se não fosse uma relação tão real e verdadeira, acho que esses julgamentos teriam tido um grande peso em mim. Milton ensinou-me a ser uma pessoa afetuosa como eu nunca tinha sido. É inacreditável a pureza dele".
Em 1996, Milton revelou publicamente que sofria de diabetes, isto numa altura em que a sua saúde estava visivelmente debilita e começava a dar espaço para especulações. Notícias da altura, chegaram a dizer que Milton pesava apenas 38 quilos e que tinha contraído SIDA. Afinal tratava-se de diabetes tipo 2 diagnosticada tardiamente, o que tinha levado à anorexia. Com a ajuda dos médicos, o cantor conseguiu, no entanto, superar esse mau período, alterando a dieta e passando a utilizar diariamente a insulina. Mais recentemente, em 2013, Milton Nascimento teve de se sujeitar a um cateterismo, numa altura em que caiu numa grave depressão, perdendo a vontade de cantar. E foram precisos três anos para recuperar.