
Ainda Gil era uma criança e já o jeito diferente com que a avó Lucília cantava as palavras lhe merecia atenção especial, uma atenção que não era muito comum entre os rapazes da sua idade (já Amália dizia que o fado não era para crianças). "Lembro-me de ser muito miúdo e de, quase em transgressão, ir ouvi-la ao Faia [Casa de Fados, em Lisboa] ", começa por recordar o cantor. "Às vezes eu e os meus irmãos lá dávamos a volta aos meus pais e conseguíamos convencê-los a ficar até mais tarde à espera dela só para a ouvir. Depois, sentava-me à beirinha do estrado de madeira que por lá havia e ficava a puxar-lhe o xaile enquanto ela cantava". Lucília do Carmo viria a morrer a 19 de Novembro de 1998, aos 79 anos, tinha Gil do Carmo já 24, mas ficaria para sempre como uma das suas grandes referências. A outra é o pai, Carlos do Carmo, claro!
A GRANDE HOMENAGEM AOS "SEUS"
A cumprir 25 anos de carreira, Gil do Carmo presta agora o tributo que faltava à avó e ao pai no novo disco 'Sê', um álbum que não é de fado, mas onde ele está presente, desconstruído e adaptado à realidade de uma Lisboa multicultural que se Carlos do Carmo viu crescer, Lucília do Carmo já não chegou a conhecer.
O ponto alto acontece no tema 'Mundo Inteiro' onde Gil faz um dueto virtual com a avó, fazendo casar a eletrónica com um dos fados mais emblemáticos de Lucília, o 'Loucura". A escolha tem um significado especial. "É por causa desse fado que eu existo", confidencia. "Foi o primeiro fado que o meu pai viria a gravar e foi esse sucesso que, uma noite, levou a minha mãe até ao Faia para o ouvir cantar. Seis meses depois estavam casados e daí nasceram três filhos. Foi uma história de amor que durou quase 60 anos", explica.
A voz de Lucília do Carmo surge ainda na faixa ‘Fado do Tuk Tuk’ mas, na verdade, a sua presença atravessa todo o disco do primeiro ao último tema. "Nem podia ser de outra maneira" diz Gil que foi "rever toda a discografia da avó, que embora "curta é bastante densa e infelizmente desconhecida" do grande público. "Sempre que faz sentido uma palavra, um verso, algo do canto da minha avó, ela lá está e aparece. Mas é sempre ela que brilha", sublinha. As críticas, essas vão aparecer, mas nem preocupam. "Eu sei que os puristas vão ficar muito zangados comigo e insultar-me de tudo e mais alguma coisa, mas eu não me importo, porque só assim é que o mundo pula e avança como dizia o poeta". E diz mais: "O meu pai ainda chegou a ouvir o disco todo e aprovou". E não se pense que foi apenas por boa vontade. "Nós na família sempre tivemos esta coisa de sermos muito críticos e honestos entre nós".
"Eu só quero é dar continuidade a tudo o que ela fez e que os mais novos conheçam a voz avassaladora que a minha avó [Lucília do Carmo] tinha"
Gil do Carmo
Convencida de que estava na altura de dizer adeus, Lucília do Carmo retirou-se dos palcos na década de 1980 para passar a cantar para um público muito especial: os netos. Gil do Carmo guarda esse período bem vivo na memória: "Lembro-me muito bem. Ela cantava numa das varandas de casa dos meus pais onde tínhamos os instrumentos todos e as aparelhagens e onde tínhamos permissão para fazer o barulho que quiséssemos durante 24 horas por dia". Por todas estas razões, para Gil do Carmo a homenagem à avó é também uma espécie de passagem de testemunho. "Eu só quero é dar continuidade a tudo o que ela fez e que os mais novos conheçam a voz avassaladora que a minha avó tinha"
Mas em ‘Sê’, Gil do Carmo não se fica apenas pela homenagem à avó. Há também um tributo ao pai, Carlos do Carmo, que morreu no primeiro dia de 2020. "As saudades diárias que tenho dele são incomensuráveis. Não dá para descrever. Foi um privilégio ter sido seu filho e guardarei na memória, para sempre, tudo aquilo que ele me ensinou e uma das coisas que ele me deixou foi esta lição de que a vida faz-se no dia a dia".
A homenagem ao 'Charmoso' como os mais chegados lhe chamavam, acontece na faixa 'Fado Breve', onde até há espaço para uma espécie de 'rap'. Esteve para ser gravado em dueto para o último disco de Carlos do Carmo, a duas vozes, entre pai e filho, mas acabou por não acontecer. "Por isso a melhor homenagem que lhe podia fazer era esta".
Olhando para trás é ao pai que Gil do Carmo deve a confiança e a "permissão" pelo início da carreira. "Recordo-me de ser ainda muito puto, de ter uns 13,14 anos e dos meus pais me deixarem sair de casa às quintas-feiras para ir cantar para um bar chamado Naus, que ficava perto dos Jerónimos. Como era bom aluno eles lá me deixavam ir tocar e cantar", lembra. "Tocava muita música portuguesa, como Fausto, Sérgio Godinho ou Trovante e as minhas brasileiradas, sempre com Chico Buarque à cabeça".
Por essa altura o apelido 'do Carmo' já pesava, mas nunca se tornou insustentável. "As pessoas sempre pensaram que por ser filho de quem sou tive as portas todas abertas mas foi precisamente o contrário. Tive que provar muito mais". Não é por isso, no entanto, que não é fadista. "Amo o fado e ele faz parte do meu ADN, mas nunca tive a pretensão em ser fadista. Tenho é o fado como ponto de partida, como um varandim sobre Lisboa. Pela forma como os meus pais me educaram eu senti que tinha que seguir o meu caminho".