
Eram oito da noite quando a família do pequeno Noah, o menino de dois anos que desapareceu em Proença-a-Velha, junto à raia com Espanha, ouviu os primeiros gritos de que o bebé tinha sido encontrado. Sem roupa, com meia dúzia de arranhões - quase nada - mas sorridente. E a brincar.
A mãe, Rita Caupers de Bragança, e o pai, o uruguaio Leandro Fans, choraram de alegria e abraçaram a criança. A busca, em que toda a gente nas redondezas se tinha empenhado, tivera um final feliz. A provar que estes casos nem sempre acabam em tragédia.
Noah voltou para a casa de pedra na quinta dos pais, depois de estes, com calma, contarem às autoridades policiais tudo o que se teria passado. Primeiro passaria pelo hospital, para ser visto, o seu caso analisado - pois não é todos os dias que um menino de dois anos sobrevive tantas horas sozinho e a dormir ao relento. O processo viria, meses depois, a ser arquivado. Sem crimes de negligência. Sem ninguém acusado ou condenado. Sem traumas. Já bastava o susto.
UM PAÍS EM SUSPENSO
Terminado o pesadelo do desaparecimento e da passagem pelo hospital, o pequenino voltou para casa, para o colo dos pais e a família respirou fundo. A família e milhões de portugueses que viveram 36 horas colados e suspensos nos ecrãs de televisão à espera de um milagre. E ele chegou. A cinco quilómetros do local onde, de madrugada, dois dias antes, Noah se levantou da cama, calçou as galochinhas e, noite cerrada, foi atrás do pai para os campos agrícolas. Para ele uma rotina. Sem maldade. Portugal seguiu a saga do bebé, do "menino desaparecido em Proença", como lhe chamavam os repórteres das televisões que "aterraram" nos descampados da Beira Baixa, e rejubilou de felicidade com o seu aparecimento. A vida voltou à normalidade.
Só que a história não terminou aí.
ALEGRIA DE POUCA DURA
Rita Caupers de Bragança, a mãe de Noah, que tinha deixado os confortos da cidade capital para - por amor a Leandro Fans e a uma vida saudável e sustentável - seguir o sonho de uma existência simples e telúrica no mundo rural, onde se tornara uma colona depois de uma ousada volta ao mundo em caravana, ficou naquele dia 17 de junho de 2021 com o coração de mãe cheio de alegria. Mas esta, tal como a vida, é fugaz.
Não demoraram doze dias até que o coração de Rita voltasse a sofrer com um rude golpe. O filho bebé estava salvo, mas o pai, o avô de Noah, Manuel Luís Caupers de Bragança, de 64 anos, não. Ficou doente. Muito doente, numa cama do Centro Hospitalar Central de Lisboa.
A 29 de junho, 12 dias depois do neto ter "renascido", o avô Manuel Luís Caupers de Bragança viu a vida fugir-lhe por entre os dedos. Rita, depois do susto e da alegria de recuperar o seu bebé-aventureiro, perdeu o pai. Depois de uma alegria, a tristeza. O Yin e o Yang da existência humana.
MEMÓRIAS DE UM AVÔ
Noah tem dois anos e dificilmente se recordará do avô Manuel Luís. As memórias que lhe restarão serão as que encontrar quando se aventurar a descobrir os seus antepassados nos álbuns de família ou a arriscar espreitar baús herdados pelos pais, onde, com sorte, poderá encontrar provas do espólio imagético dos Caupers de Bragança.
Um dia, Noah vai descobrir que o avô Manuel Luís foi um homem de causas. Que lutou pela cidadania na cidade de Lisboa. Que foi um dos subscritores de uma petição, uma das primeiras online, que os cidadãos da capital subscreveram contra a construção do elevador do Castelo de São Jorge, em 2000.
O avô de Noah não se ficou por aí em matéria de valores de cidadania e foi, junto com milhares de portugueses, subscritor de um manifesto contra o novo acordo ortográfico, promovido por figuras políticas como o ex-social democrata Pedro Santana Lopes e a socialista Edite Estrela. Manuel Luís até uma carta enviou ao semanário Expresso, vincando a sua oposição e denunciando, com exemplos concretos, casos de ridicularização da língua e da cultura portuguesa, por força das mudanças na grafia que o acordo impunha. E impôs.
O BISAVÔ NOBRE E REVOLUCIONÁRIO
Manuel Luís não foi escritor, ao contrário do seu pai, Nuno Bragança. Mas cuidou com zelo do espólio da obra do progenitor. Uma vasta obra. Nuno nasceu numa família da alta aristocracia portuguesa, a Casa de Lafões, um ramo dos Duques de Bragança e era 6.º neto do Rei D. Pedro II de Portugal. Praticou boxe, fez caça submarina e em 1955 estreou-se nas hostes literárias no jornal ‘Encontro’ (o órgão oficial da JUC – Juventude Universitária Católica), onde publicou os seus primeiros textos literários. Tomou-lhe o gosto. Nunca mais o deixou.
Nuno Bragança produziu inúmeras peças radiofónicas. Satirizou com fartura o presidente do conselho António de Oliveira Salazar. Fez crítica cinematográfica. Fundou e dirigiu o Cine Clube - Centro Cultural de Cinema e era, assumidamente, um truculento católico progressista. Sempre ao lado de figurões da nossa cultura de então como João Bénard da Costa, António Alçada Baptista, Pedro Tamen ou o "poeta maldito" Mário de Cesariny, entre muitos outros.
Vários textos publicados sobre a sua vida obra em publicações como a revista Visão e o jornal Público, colocam no turbilhão revolucionário pré e pos-25 de Abril um Nuno Bragança que escrevia textos subversivos na revista 'O Tempo e o Modo' (Fundada em 1963) e circulava pelo submundo da intelectualidade portuguesa dos anos 70 e 80 do século passado. De católico progressista a revolucionário assumido, foi classificado como "violento e afectuoso", fez-se à estrada da vida e viveu-a. Até morrer novo. Aos 55 anos.