
"A luta é aqui. Preciso de munições, não de uma boleia." A resposta do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky ao convite norte-americano para ser retirado do país em plena invasão russa ficará para a história como um mote de resistência que representa a inabalável reação de todo o povo ucraniano desde a madrugada do dia 24 de fevereiro, quando viram a sua nação a ser alvo de uma investida por parte da Rússia de Vladimir Putin.
O passado de Zelensky, hoje com 44 anos, como comediante foi o principal ponto de atenção do Ocidente quando este chegou ao poder em 2019, levando até a comparações entre o seu percurso e o de Donald Trump, à altura ainda presidente norte-americano. No entanto, esta terça-feira, numa entrevista à 'CNN' a partir do bunker em Kiev onde tenta resistir ao poderio militar russo, Zelensky frisou que a situação atual "não é um filme" e que, portanto, é para ser levada muito a sério, enquanto líder do país.
DA TELEVISÃO À POLÍTICA
Filho de pais judeus, licenciou-se em Direito na universidade de Kryvyi Rih, cidade onde nasceu quando esta ainda era soviética, não antes de começar a sua carreira na comédia através do grupo "Zaporizhia-Kryvyi Rih-Transit", que venceu a competição de humor russa KVN em 1997, criando depois a equipa Kvartal 95, que se tornou numa produtora de programas para canais ucranianos. Em 2006, participou e venceu a primeira edição do programa ‘Dança com as Estrelas’, na Ucrânia, ao lado da dançarina Olena Shoptenko.
A partir daí, teve uma carreira de sucesso também enquanto ator. Protagonizou várias comédias românticas, quer produções russas, nomeadamente ‘Lyubov v bolshom gorode’ (algo como ‘Amor na grande cidade’) e a sequela – a última nem sequer foi exibida na Ucrânia, devido à proibição de filmes russos que estava a ser promovida na altura pelo governo local e relativamente à qual Zelensky se mostrou frontalmente contra – quer, posteriormente, em co-produções russo-ucranianas, como ‘8 pervykh svidaniy’ (‘8 Primeiros Encontros’), de 2012.
Também na animação deu cartas, tendo dado voz ao urso Paddington na versão ucraniana dos dois filmes, em 2014 e 2017, até que teve o seu maior e último sucesso, a série ‘Sluha Narodu’ (‘Servidor do Povo’ em português), no qual interpretou um professor de História de uma escola secundária que acaba eleito presidente do país, antecipando o percurso que iria trilhar na vida real, e que haveria de dar nome ao partido com o qual chegou à presidência.
Efetivamente, foi em 2019 que Zelensky derrotou o à altura presidente Petro Poroshenko, nas eleições presidenciais ucranianas, com uma percentagem de 73,22%. Não demorou muito até enfrentar o primeiro grande obstáculo: a pandemia de covid-19 trouxe severas consequências económicas e mais de 100 mil mortes oficiais, que podem ter sido até cerca de 170 mil, de acordo com um relatório da OCDE.
Parece algo impensável nesta altura, mas a popularidade de Zelensky entre os ucranianos estava de facto em queda livre nos tempos que antecederam a invasão russa. Numa sondagem do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev datada do início de fevereiro, apenas 23% dos inquiridos afirmaram que votariam em Zelensky nas próximas eleições. Entre as críticas apontadas, encontrava-se o falhanço em cumprir a promessa eleitoral de acabar com o nepotismo nas instituições públicas ucranianas, após ter indicado Ivan Bakanov, um amigo seu de infância que trabalhou consigo em televisão, como presidente dos serviços secretos da Ucrânia, assim como o facto de não ter conseguido um compromisso com Vladimir Putin para assegurar a paz na região disputada do Donbas, outra das suas promessas eleitorais.
Importa ainda referir que, nos famosos Panama Papers, os nomes de Zelensky e Bakanov surgiram ligados a uma rede de empresas em offshores.
Contudo, a reação à invasão por parte dos homens de Putin mudou tudo e, devido às suas ações de resistência durante o conflito que se desenrola na Ucrânia, a taxa de aprovação dos ucranianos em relação a Zelensky está já nos 90%, segundo uma sondagem conduzida pelo Ratings Sociological Group entre 26 e 27 de fevereiro. É seguro dizer que, neste momento, não haverá ninguém em quem os ucranianos mais confiam para liderar os destinos do país pelo qual batalham, com as suas ações de heroísmo a ofuscarem todos os problemas previamente referidos.
A PRIMEIRA-DAMA QUE QUERIA MUDAR A UCRÂNIA
Na faculdade em Kryvyi Rih, Zelensky apaixonou-se por Olena Kiyashko, hoje Zelenska, com quem namorou durante oito anos antes do casamento em 2003, do qual são frutos dois filhos: Aleksandra, hoje com 17 anos e que chegou a contracenar com o pai no cinema, e Kyrylo, com 9. Apesar de ter começado numa carreira em arquitetura, Olena rapidamente se virou para a escrita, tendo ajudado Zelensky durante o seu percurso na comédia, enquanto guionista.
Inicialmente contra a incursão de Zelensky na política, Olena tornou-se numa primeira-dama marcante, reconhecida pelas suas escolhas estilísticas. Foi inclusive capa da ‘Vogue’ ucraniana, em 2019: "A forma como te vestes e te apresentas não fala apenas por ti, mas também pelo teu país e por aquilo que te propões a alcançar. O presidente e eu queremos sempre representar a Ucrânia de uma forma positiva e forte. É um reflexo das nossas ações e valores e é uma forma de promover os designers ucranianos e a nossa indústria da moda, assim como de dizer mais ao mundo sobre a Ucrânia, o que fazemos e o que oferecemos", referiu numa entrevista à ‘Diplomatic Courier’, em setembro.
No papel de primeira-dama, Olena tem-se mostrado focada na vertente da justiça social, tomando uma posição que visa a promoção da igualdade de género no país: "Escolher uma profissão ou um hobby é um direito inalienável para todos. Eu gostava que todas as raparigas e todas as mulheres acreditassem em si mesmas e não deixassem que os estereótipos as impeçam de cumprir os seus sonhos. Somos livres para escolher o que queremos ser", disse num vídeo apresentado pelo Fundo de População das Nações Unidas em março de 2021, tendo também sido responsável pela adesão do país à Parceria de Biarritz, uma iniciativa da cimeira do G7 enquadrada neste âmbito.
Igualmente a favor do multiculturalismo na Ucrânia, Olena Zelenska convidou, no mesmo mês, 12 mulheres ucranianas de etnias distintas para uma reunião relativa à campanha ‘Svoya’, onde todas elas explicaram os desafios que encontram num país com muito caminho a trilhar no que se refere à eliminação dos vários tipos de discriminação, problema apontado em várias análises relativas à Ucrânia.
Desde o início do atual conflito, Zelenska tem estado ativa nas redes sociais, através das quais tem partilhado vários conselhos para a população ucraniana, embora, por motivoss de segurança, não tenha sido difundida a sua localização, nem a dos seus filhos. Sabe-se que se encontra ainda na Ucrânia, onde, como todos os seus conterrâneos, tenta evitar ao máximo que a sua pátria seja engolida por uma das maiores superpotências mundiais.
Este foi, aliás, o desejo que demonstrou na sua primeira declaração após a madrugada da passada quinta-feira: "Hoje não vou chorar nem ficar em pânico. Vou estar calma e confiante. Os meus filhos estão a olhar para mim. Eu vou estar junto a eles. E junto ao meu marido. E com vocês. Eu amo-vos! Eu amo a Ucrânia"