
Escreveu Eça de Queiroz no célebre romance 'A Cidade e a Serras' - uma das suas mais reconhecidas obras - que "a cidade... é talvez uma ilusão perversa", que nela o homem "pensa ter a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria". Escreveu ainda que foi na cidade que o homem perdeu "a força e a beleza harmoniosa do corpo". Ora é precisamente na cidade, em particular em Lisboa, que Eça, 123 anos depois da sua morte, deverá vir a ser sepultado em definitivo, para muitos um atentado à sua memória.Nesse mesmo romance, ironizava ele sobre os males da civilização, lembrando que "só uma estreita e reluzente casta goza na cidade os gozos especiais que ela cria" e que o que "a cidade mais deteriora no homem é a inteligência". Em a 'Cidade e as Serras' , escrito em Santa Cruz do Douro, no concelho de Baião, onde está atualmente enterrado (e onde muitos defendem que deve continuar), Eça fazia claramente o elogio dos valores da natureza, sublinhando que o que fazia o homem feliz, era a vida calma simples e natural. Agora, ao que tudo indica, poderá ser trasladado do local das serras que tanto o inspiraram para uma cidade igual a tantas outras e que tanto criticou.
O processo de trasladação de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional (monumento que nem sequer estava concluído à data da sua morte, sendo conhecido como obra de Santa Engrácia) esteve agendado para acontecer no dia 27 de Setembro, mas uma providência cautelar interposta por alguns descendentes do escritor (que defendem a sua continuação no Douro) travaram abruptamente todo o processo. Preparada estava já a sala tumular no Panteão e uma exposição documental evocativa do autor. A polémica já tinha chegado à Conferência de Líderes Parlamentares uns dias antes, a 15 de setembro, com o Presidente da Assembleia da República a reconhecer que este era um assunto "embaraçoso". A verdade é que se voltarem a ser levantados os restos mortais de Eça de Queiroz, agora do cemitério de Santa Cruz do Douro, esta será a terceira vez que o escritor é transportado de local após a sua morte. Mas já lá vamos.
Antes de mais, é preciso perceber que a polémica em torno da última morada de Eça de Queiroz encontra razão de ser numa família dividida. Alguns descendentes, mais concretamente seis dos 19 bisnetos, invocam a condição de herdeiros para tentar impedir a trasladação para o Panteão Nacional e manter os restos mortais do escritor em Baião. Escreveram mesmo ao Presidente da Assembleia da República a propor que as honras de Panteão sejam concedidas sim mas apenas através de uma lápide evocativa, sem a transferência do corpo. O problema é que os restantes 13 bisnetos apoiam a ideia da mudança impulsionada pelo grupo parlamentar do PS e aprovada, por unanimidade, em plenário, no dia 15 de janeiro de 2021. A favor da trasladação está também a fundação Eça de Queiroz, instalada na famosa Casa de Tormes (precisamente localizada em Santa Cruz do Douro) onde o escritor se inspirou para escrever ‘A Cidade e as Serras’ e que hoje funciona também como museu. A fundação é presidida por Afonso Reis Cabral, um dos bisnetos do escritor que já fez questão de explicar publicamente porque razão o lugar de Eça é na Capital. "Eça esteve 90 anos em Lisboa [enterrado] e apenas por uma contingência passou muito dignamente para Santa Cruz do Douro, em Baião, onde está".
Abra-se aqui um parêntesis, no entanto, para lembrar que curiosamente, a relação de Eça de Queiroz com a Casa de Tormes (nome literário que o cantor deu ao local que na verdade se chama Quinta da Vila Nova, em Santa Cruz do Douro) nem foi pacífica e muito menos de amor à primeira vista. Eça nunca viveu nessa casa, nem sequer gostava dela, mas deixou-se encantar pela sua envolvência. A quinta tinha sido herdada pela sua mulher Emília de Castro após a morte dos pais, os condes de Resende, e conta-se que quando Eça veio de Paris para conhecer o local e deu de caras com uma casa rural sem condições e habitada por animais, a considerou "feia", de "fachada hedionda" e "de um mau gosto incomparável". Os caseiros, descrevia ainda no romance ‘A Cidade e as Serras’, "comem o caldo à lareira e usam as salas para secar o milho". Foi, no entanto, a paisagem que o cativou. "O caminho íngreme e alpestre até à quinta é simplesmente maravilhoso. Vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito monte", escreveu. Após a morte de Eça, foi, primeiro a filha mais velha, Maria Eça de Queiroz de Castro, e depois o neto do escritor e sua esposa, Maria da Graça Salema de Castro, que deram forma ao museu e à fundação que nasceu em 1990. E é por este motivo, que o povo de Baião acredita que é lá que deve continuar Eça de Queiroz.
COMO TUDO COMEÇOU
O processo de trasladação do também escritor de 'Os Maias' foi proposto inicialmente em 2020 precisamente pela família que dirige a Fundação Eça de Queiroz. A proposta chegou, na altura, ao então deputado socialista José Luís Carneiro que, à época, era também presidente da Assembleia Municipal de Baião, mas parece estar agora de tal forma emperrada que até o Estado pode vir a meter-se ao barulho e assumir a decisão final. É que apesar da lei dizer que, só os bisnetos podem ter a palavra no que concerne à mudança dos restos mortais do escritor, o especialista em Direito Administrativo Paulo Veiga Moura afirmou, à SIC Notícias, que a Assembleia da República pode avançar com uma resolução "evocando graves prejuízos para o interesse público a não concretização da trasladação". E se é verdade que o ato que estava previsto para acontecer a 27 de Setembro foi suspenso pelo Supremo Tribunal Administrativo, também é facto que ele não está proibido, pelo que o mais certo é que venha mesmo a ocorrer noutra data. Enquanto isso, por Baião, cartazes afixados na via pública vão espelhando a indignação da população (que fez um abaixo assinado): "Eça é da Nação, Santa Cruz do Douro é o Seu Panteão'
Mas vamos então a um pouco de história, para se perceber por onde já andou o corpo de Eça de Queiroz, sem direito a descanso, desde 1900, ano da sua morte. Foi na cidade de Paris (exercia por lá o cargo de cônsul de Portugal), mais concretamente na Avenue Du Roule, em Neuilly-sur-Seine, onde vivia com a família, que Eça morreu, a 16 de agosto de 1900, a três meses de completar 55 anos [acredita-se que terá sido vítima de Neurastenia, enfraquecimento do sistema nervoso central]. O caixão mortuário esteve primeiramente depositado, de forma provisória, num túmulo, na Igreja de Saint-Pierre de Neuilly e só viria a ser transportado para Portugal, um mês depois. Ainda se terá pensado em enterrar o escritor em Aveiro, onde Eça passara a infância em casa dos avós, mas Hintze Ribeiro - então presidente do Conselho de Ministros de Portugal - decidiu trazê-lo para Lisboa. O caixão desembarcou no Terreiro do Paço a 17 de Setembro. Coberto pela bandeira portuguesa e após um longo cortejo seria depositado no jazigo dos condes de Resende (os sogros), no cemitério do Alto São João, onde ficou por quase 90 anos.
Ora foi em 1989 que os herdeiros de Eça resolveram trasladar os restos mortais do escritor do Alto São João (o jazigo dos Condes de Resende ameaçava ser vendido em leilão) para o cemitério de Santa Cruz do Douro. Por força da neta por afinidade Maria da Graça Salema de Castro, o corpo de Eça viria, então, a ser enterrado a 13 de setembro de 1989, ao lado da filha Maria, que em vida do escritor havia sido sua parceira literária e organizadora da sua papelada. Na altura, o Governador Civil do Porto, Mário Cerqueira chegou a declarar que o que tinha acontecido era o "ato final da paz e tranquilidade que nem sempre acompanhara o escritor durante a sua vida". Mas afinal não era bem assim.
E O QUE PENSARIA EÇA SOBRE ESTE ROMANCE?
É verdade que Eça nunca expressou taxativamente o seu desejo ou vontade quanto à sua última morada, mas o facto é que deixou algumas pistas. Chegou, por exemplo, a abordar, de forma irónica, num artigo na 'Gazeta de Notícias', a moda francesa de levar os "Grandes Homens de França" para o Panthéon. Deixava claro que considerava os "panteões" uma coisa que serve apenas para o Estado e que será sempre humanamente impossível decidir o que é "um grande homem". Dizia mesmo que apenas um único escritor merecia lá estar: Victor Hugo. António Eça de Queiroz, um dos descendentes do escritor que está contra a trasladação, corrobora esta ideia, tendo afirmado recentemente à SIC Notícias, que a mudança dos restos mortais de Eça não será uma honra e que "quem ficará orgulhoso do troféu serão os políticos".
No meio de tudo isto, também há quem considere que levar o romancista para um local onde estão Amália Rodrigues (uma fadista) e Eusébio (um futebolista) constituiu um atentado à sua memória. Considerado, juntamente com Fernando Pessoa e Luís Vaz de Camões, como umas das três grandes figuras da nossa literatura, uma coisa é certa: a paz eterna para Eça de Queiroz parece ainda estar longe de ser alcançada. E o imbróglio promete estar para durar.