
"Quero que eles fiquem envergonhados por ter sido necessária a Marinha, vários navios de guerra, comandos armados, três injeções de tranquilizantes e uma hora de luta para colocar uma pequena mulher desarmada num jato". As palavras são da princesa Latifa, uma das muitas filhas do poderoso emir do Dubai, o xeque Mohammed bin Rashid al-Maktoum, numa das mensagens secretas que conseguiu enviar aos amigos depois de ter sido sequestrada pelo pai quando tentava fugir de anos de tortura no palácio.
Não faz muito tempo, organizações de direitos humanos estavam à frente de uma campanha pela libertação da princesa Latifa. A história ganhou ainda mais destaque quando a princesa Haya, uma das madrastas de Latifa, fugiu do Dubai com os dois filhos crianças para esconderem-se numa mansão nos jardins do palácio de Kensington – onde Kate Middleton e o príncipe William viviam – enquanto preparava o divórcio mais polémico dos últimos anos.
A segunda tentativa de fuga de Latifa, que já estava a seguir o exemplo da irmã mais velha Shamsa, outra princesa que tentou escapar do pai, ajudou a princesa Haya a conseguir o divórcio, a guarda dos filhos e a distância que ela tanto esperava do emir do Dubai. Mas o que aconteceu com Latifa? E com a princesa Shamsa, o que se sabe do destino das duas princesas?
De acordo com o ‘Guardian’, a história de Latifa vai ser contada numa série dividida em quatro partes, com estreia prevista no próximo ano. A premiada Lindsay Shapero assina o guião deste drama, com apoio dos produtores da Yellow Film & TV, dos finlandeses Jackie Larkin e Olli Haikka.
Quando toda a tentativa de fuga veio a público, com ajuda dos amigos de Latifa, o mundo soube pela voz da própria princesa como era a sua vida no palácio. A filha do emir do Dubai e da mulher Houria Lamara viveu a primeira década da vida sem saber quem eram os pais biológicos. Ela e o irmão mais novo foram um ‘presente’ do emir a uma de suas irmãs, que não teve filhos, relatou a ‘The New Yorker’.
Quando tinha 10 anos, Latifa e o irmão receberam a visita de uns familiares que mais tarde soube que eram na verdade a mãe e a irmã Shamsa. A irmã entrou um dia na casa em que vivia Latifa a exigir que os irmãos fossem consigo para casa. "Shamsa foi a única que lutou por nós ", escreveu Latifa aos amigos. "Via-a como uma figura materna e melhor amiga."
Os irmãos foram devolvidos à mãe e o xeque Mohammed visitava-os de vez em quando. Na adolescência, Shamsa começou a desafiar o pai com a vontade de conduzir, viajar, estudar, e odiava cobrir-se com a tradicional abaya. "Shamsa era rebelde e eu também", escreveu Latifa. "Mas Shamsa tinha um pavio mais curto."
No início de 2000, Shamsa apareceu na porta do quarto de Latifa e disse que estava a ir embora. "Vens comigo?", questionou uma irmã, de 19 anos, à outra, de 14. Sem conseguir obter resposta, Shamsa foi embora. "Aquele momento ficou gravado na minha memória", escreveu Latifa. "Porque se eu tivesse dito sim, talvez o resultado tivesse sido diferente".
A tentativa de fuga da princesa Shamsa teve muito menos repercussão do que a de Latifa. Depois de conseguir autorização para ir ao Reino Unido, a princesa aproveitou uma noite para fugir da propriedade do pai, passou um mês escondida em Londres em casas de conhecidos e em contacto com um advogado de imigração cujo nome descobriu nas Páginas Amarelas. Shamsa queria uma estratégia para pedir asilo ao Reino Unidos mas foi apanhada numa emboscada em Cambridge com um amigo. Não se sabe se a pessoa que estava a ajudá-la esteve envolvida na sua captura, mas Latifa descreveu que o pai tinha oferecido um Rolex a uma das amigas de Shamsa em Londres, para obter informações sobre a filha.
"Fui pega no dia 19 de agosto, em Cambridge. Ele mandou quatro homens árabes para capturarem-me, estavam armados e ameaçando-me, levaram-me até a casa do meu pai em Newmarket, lá deram-me duas injeções e um punhado de comprimidos, na manhã seguinte um helicóptero veio e levou-me para o avião, que me levou de volta a Dubai. Estou presa até hoje", diz um email que Shamsa conseguiu depois enviar ao advogado com ajuda de Latifa, citado pelo ‘Guardian’.
O caso de Shamsa, a ser provado, seria motivo para uma investigação sobre uma alegada violação da lei do rapto no Reino Unido, e colocaria em causa autoridades britânicas.
AMIGO DO OCIDENTE
O Xeque Mohammed assumiu oficialmente o trono após a morte do seu irmão, em 2006. Por aquela altura, o Dubai assumia-se como um dos principais parceiros dos Estados Unidos na luta contra o terrorismo. No Reino Unido, o emir do Dubai fez fortes laços com a família real.
Ele é um dos maiores proprietários de terras da Grã-Bretanha, também é dono da maior operação de corridas de puro-sangue do mundo, uma das razões que o levaram a ter uma amizade com a falecida rainha Isabel II, com quem era muitas vezes fotografado.
Para o mundo, o emir do Dubai tenta passar uma imagem de pai amoroso, poeta, governante a favor da igualdade salarial entre homens e mulheres e responsável por colocar mulheres em altos cargos. As mulheres são "a alma e o espírito do país", defende o emir. Mas entre as paredes do palácio correm as histórias de tortura, prisão e até a misteriosa morte de uma mulher que desafiou as suas leis, a sheikha Bouchra, aos 34 anos.
COMO LATIFA ARRISCOU A VIDA PARA SALVAR A IRMÃ
A princesa Latifa tinha 16 anos quanto tentou pela primeira vez fugir do palácio do pai. O seu objetivo era atravessar a pé a fronteira com o país vizinho, Omã, em busca de um advogado para tirar Shamsa da prisão onde foi colocada, mas foi apanhada por um dos funcionários do emir do Dubai, que a levou para ser interrogada pelas autoridades.
Depois de estar em casa, Latifa foi espancada até o sangue escorrer do seu nariz, sob o olhar da mãe. Quando as agressões acabaram, a princesa foi levada a uma prisão no deserto onde ficou um ano.
No primeiro dia, Latifa foi obrigada a tirar os sapatos e em seguida foi agredida na sola dos pés com uma madeira. Esta sessão de tortura durou cinco horas, escreveu num dos muitos relatos que enviou aos seus amigos, citado pela ‘The New Yorker’. No dia seguinte, a princesa foi arrastada da cama para mais uma sessão de espancamentos. Estes relatos foram todos negados pelos advogados do xeque.
Latifa saiu da prisão depois de um ano, mas não tinha nem sinal da irmã Shamsa. Só três anos depois a outra princesa saiu da prisão. "Ela era apenas uma sombra do que era, com toda a força de vontade torturada", escreveu Latifa. Shamsa tentou cometer suicídio três vezes, fez greve de fome e só assim saiu da prisão, para ser mantida trancada no palácio da mãe a receber tranquilizantes e antidepressivos.
A partir dali, Latifa passou sete anos a planear a fuga para salvar-se e salvar a irmã. Mas Shamsa era mantida numa ala isolada, com fortes sedativos e ela decidiu ir sozinha.
A FUGA
Todo o plano foi pensado em detalhes com a finlandesa Tiina Jauhiainen. A mulher trabalhava com vendas e como instrutora de artes marciais quando conheceu a princesa. Tiina dava aulas de capoeira a Latifa, a sua aluna mais determinada, que convenceu-a deixar o outro trabalho para dar aulas todos os dias. Logo Tiina passou a acompanhar Latifa em aulas de paraquedas, de mergulho e uma série de desportos radicais. Latifa queria estar preparada para qualquer plano de fuga.
Nesta parte, o franco-americano Herve Jaubert, autor do livro ‘Escape from Dubai’ que inspirou Latifa, era o responsável por receber dinheiro e diamantes da filha do emir do Dubai para comprar material de mergulho e um iate que seriam usados na fuga. Hoje em dia, a participação de Herve, que se diz um antigo espião francês, também é posta em causa – com acusações que terá aproveitado o dinheiro para uso próprio.
Em fevereiro de 2018, Latifa pediu a um motorista para levá-la a um café onde estava Tiina. As duas mulheres saíram sem serem vistas, entraram num Audi emprestado onde a princesa saiu escondida. Numa área perto de Omã, as duas mulheres pararam o carro para que Latifa entrasse no compartimento vazio do pneu sobressalente, certa de que podia morrer asfixiada. Tiina conduziu durante 20 minutos até chegar ao posto de controlo da fronteira, parou o carro, os polícias pediram para revistar o porta-malas e deram autorização para ela seguir. Já em Omã, as duas amigas celebraram e tiraram selfies, seguindo depois em direção ao mar.
Em Omã, Latifa e Tiina tivera ajuda de outro francês, Christian Elombo, ex-instrutor de artes marciais da finlandesa. A tarefa dele era transportar as duas mulheres num bote de borracha para o iate de bandeira norte-americana comprado por Herve, o Nostromo. Os pescadores alertaram o grupo que uma tempestade estava a aproximar-se mas eles continuaram no mar agitado. Herve e outro tripulante tiveram de buscar as duas mulheres em jet ski, caíram à água várias vezes, mas conseguiram chegar ao iate.
Elombo foi detido para interrogatório assim que regressou à praia; Latifa, Tiina e Herve passaram uma semana a navegar, estavam a 50 km da Índia quando souberam da prisão do cúmplice. Por aquela altura, já sabiam que o emir do Dubai não teve dificuldades em encontrá-los. Ainda tiveram tempo de contactar um grupo de direitos humanos e pedir ajuda. O iate foi invadido numa noite por homens encapuzados, que prenderam as mulheres e forçaram-nas a subir ao convés, onde o capitão e a sua tripulação foram amarrados e espancados. Latifa resistiu, recordou Tiina, com chutes e gritos. A finlandesa ainda ouviu a amiga a gritar: "Atire em mim aqui! Não me leve de volta", lembrou, em declarações à ‘New Yorker’.
Latifa tinha 32 anos, foi drogada e levada de volta ao palácio do pai. "Lembro-me das lágrimas a escorrer pelo meu rosto", escreveu aos amigos através de um telemóvel contrabandeado para uma villa privada, com janelas que não abrem e de muros altos. "Foi a pior sensação do mundo. Estar de volta ao inferno depois de estar tão perto da liberdade."
Vários vídeos com relatos da sua história chegaram à imprensa internacional, as únicas reações do palácio foram que a princesa teria sofrido uma tentativa de sequestro de Herve e eles a tinham recuperado na costa de Goa.
Em agosto deste ano, a captura de Latifa teve outro desenvolvimento. Uma queixa foi feita no Tribunal Penal Internacional em Haia contra as "forças armadas" indianas por suposto envolvimento com uma "abordagem hostil num iate de bandeira dos EUA em águas internacionais, ataque armado e lesões corporais graves, conspiração para cometer assassinato, ameaça de vida, sequestro e detenção ilegal, invasão, roubo e danos ilegais à propriedade, violações dos direitos humanos e tortura". O SILÊNCIO
Inicialmente, as mensagens que Latifa enviava ao ativista David Haigh era para que não desistissem dela, que desconfiassem quando ficasse em silêncio, mas com o passar do tempo a "sua coragem estava a diminuir, diminuir, diminuir", contou David à ‘The New Yorker’. "Ela realmente estava a passar por dificuldades". A última mensagem que o ativista recebeu da amiga foi no dia 21 de julho de 2020. "Não acreditarei que estou livre até estar em solo do Reino Unido".
Depois disso, uma conta com o nome de Latifa começou a mostrar fotos da princesa em centros comerciais, a conduzir no Dubai, numa aparente viagem a Madrid, e novos advogados surgiram para declarar que a princesa estava a viver como queria.
Tiina e David tiveram de desistir da campanha pela liberdade da princesa, argumentando que já não fazia sentido diante daquelas fotografias. Eles acreditam que Latifa fez algum acordo, ideia que também defende uma enfermeira que cuidou da princesa Shamsa. "Acho que ela negociou algo e agora está a administrar a própria vida, dentro de limites aceitáveis", disse a mulher à ‘New Yorker’. Da princesa Shamsa a mesma fonte não tinha notícias.
A conta de Instagram com o nome de Latifa tem atualmente apenas duas publicações, a última foi publicada no início desta semana. A primeira publicação tem data de abril e diz: "Quero partilhar a minha gratidão sincera a todos que mostraram compaixão nos últimos anos. Neste período, a minha vida mudou de tantas formas e estou ansiosa pelo próximo capítulo", disse.
"Tive conhecimento recentemente que meios de comunicação estão a fazer perguntas para um artigo que coloca em causa a minha liberdade, porque eu não falei publicamente sobre o que aconteceu. Fiz comunicados através dos advogados e publiquei fotografias pessoais de viagens e de familiares a pensar que isso seria o suficiente. Consigo compreender que, de uma perspetiva exterior, alguém que costumava falar tanto de repente deixar de fazer isso e ter outros a falar por si, especialmente depois de tudo o que aconteceu, faz com que pareça que eu estou a ser controlada. Sou totalmente livre e estou a viver uma vida independente. Vivo no Dubai a maior parte do ano, e posso viajar também, que é o que eu quero", lê-se.
"Mais uma vez, quero agradecer a todos os que me apoiaram e cuidaram de mim. Estou extremamente grata. Ps: a foto é da minha última viagem, há alguns meses".
Apesar desta declaração no Instagram e dos comunicados dos advogados, Latifa não voltou a falar com a amiga Tiina nem com a organização de direitos humanos com quem mantinha contato.