
Estava previsto ser publicada após a sua morte, mas o Papa Francisco antecipou o lançamento da sua biografia para que os fiéis, os admiradores e todos aqueles que tenham interessem o possam conhecer melhor em vida. E o que nos traz em 'Francisco - Esperança', que agora chega às livrarias, está longe de ser uma história chata de como uma figura marcada pela fé chegou a Sumo Pontífice. Até nestas mais de 300 páginas Francisco pretende ser disruputivo.
Sem passar uma camada de brilho extra, conta como foi a sua vida na Argentina num bairro pobre, em que convivia com prostitutas e sonhava com jogos de futebol. Como a carne tantas vezes foi fraca, como fez coisas de que se envergonha, como foi marcado por infortúnios familiares e como não foge aos temas-chave para a igreja como homossexualidade, abusos e uma série de assuntos que ele próprio sempre fez questão de colocar na ordem do dia, desmistificando-os, sem tabus, numa estreia absoluta no Pontificado.
A sua biografia não é mais do que a história apaixonante de Mario Bergoglio, que nem imaginava que um dia poderia vir a ser o novo Papa.
OS DETALHES QUE MUDAM VIDAS
Todos somos, de uma forma ou de outra, fruto de acasos. E o do Papa Francico conta-se da seguinte forma. Corria o nao de 1927 quando a família paterna do pontífice preparava uma mudança de vida de Itália para a Argentina. A travessia seria feita através de barco e os bilhetes estavam comprados, mas os avós e o pai de Francisco não chegariam a embarcar, por não terem conseguido vender todos os fragmentos da vida passada de que se pretendiam desfazer em Itália. Ora, esse barco, conhecido como o Titanic italiano, acabaria por naufragar, durante a travessia entre Génova e Buenos Aires, num desastre violento que ficaria para a história. A família de Francisco faria a viagem para a Argentina de forma segura alguns meses depois.
O NASCIMENTO DE FRANCISCO
Filho de um italiano, de Piemonte, e de uma argentina, no livro o papa relata momentos da sua existência, como o dia em que veio ao mundo, a 17 de dezembro, um ano depois do casamento dos pais. O médico é chamado a casa, quando se percebe que já não se podia esperar mais. "Esta tem sido uma grande história nas nossas reuniões familiares. (O médico) começou a sentar-se sobre a sua barriga, a pressionar e a saltitar para desencadear o parto. E foi assim que vim ao mundo. Quando saí, pesava quase cinco quilos e a mamã cerca de 44", pode ler-se na obra.
A VIDA NO BAIRRO
Mario Bergoglio, que como papa viria a receber o nome de Francisco, cresce no Bairro das Flores, em Buenos Aires, numa infância em que havia futeboladas na rua e as tropelias típicas das crianças. "Recordo algumas cenas das quais não estou nada orgulhoso. Na esquina da Praceta havia uma casa onde vivia uma senhora que se tinha casado com um bancário. O homem morrera e demo-nos conta que, depois, a viúva mandava entrar às escondidas um dos polícias do bairro. Nós crianças esgueirávamo-nos então até à janela do quarto e começávamos a gritar, a chamar e a bater nos vidros... em suma, a incomodar", recorda, entre as memórias num bairro que descrevia como "um caleidoscópio de etnias, religiões e profissões".
Entre as aventuras normais de uma criança, Francisco lembra ainda o dia em que foi repreendido pela professora primária e em resposta "a mandou para aquela parte".
Mas também recorda alguns episódios menos felizes, entre colegas, em que chegou a usar a força quando não conseguiu chegar a um entendimento pela via da conversa. "No encontro físico, tinha-o deitado ao chão e ao cair o rapaz batera com a cabeça e perdera mesmo os sentidos. Além disso, fizera-o de uma forma cobarde", lamentou, garantindo que o rapaz, que encontraria mais tarde já homem, lhe dera uma lição de humildade. "Passaram muitos anos e quando já era arcebispo de Buenos Aires encontrei-o. Parecera-me um homem de grande bondade, que ainda por cima me deu uma lição", explicou.
A AMIZADE COM PROSTITUTAS
O Papa Francisco cresceria então neste bairro marcado por alguma pobreza e diferentes camadas sociais. Na biografia, conta que isso o levou, desde cedo, a travar contacto com muitas etnias e situações, inclusivamente a prosituição.
"Na esquina da nossa rua, havia um cabeleireiro com um apartamento anexo. A cabeleireira chamava-se Margot e tinha uma irmã, que era prostituta. Eram pessoas muito boas. Um dia, a Margot teve um filho. Eu não percebia quem era o pai e a coisa admirava-me e suscitava-me curiosidade, mas o bairro não parecia demasiado preocupado com isso", conta, descrevendo um outro de caso, de duas prostitutas de luxo, Chiche e Porota, uma das quais viria a tornar-se sua amiga, quando já era bispo. "Sabes, disse-me ela, fui prostituta toda a vida. Depois, apaixonei-me por um homem mais velho, foi meu amante. Depois, quando ele morreu, mudei de vida", contou-lhe quando o encontrou, vários anos depois. Os dois acabariam por desenvolver uma bonita ligação cimentada na fé.
AS PAIXONETAS DA JUVENTUDE
Antes de decidir dedicar a sua vida à Igreja, Francisco era um rapaz como tantos outos, e na sua biografia recorda os namoricos que manteve na juventude. "Também eu sentia uma atração por duas raparigas, naquele tempo, uma de Flores e outra do Bairro de Palermo. Porém, não foram namoros oficiais, saíamos juntos, íamos dançar o tango".
Como o primeiro grande amor, no entanto, recorda uma menina, de nome Amalia, por quem se apaixonou na Primária. "Escrevi-lhe uma carta em que lhe dizia que nos deveríamos casar, tu ou ninguém, e para dar força à proposta desenhei memso a casinha branca que compraria e onde um dia iríamos morar. Um desenho que incrivelmente aquela menina conservou por toda a vida".
A MORTE DOS PAIS E DE TRÊS DOS IRMÃOS
Depois de Francisco, os pais teriam mais quatro filhos, mas hoje o Papa só preserva a irmã mais nova viva. Mortes que ainda hoje chora e que partilhou na sua biografia, onde revela também a dura perda dos progenitores.
"Quando o meu pai morreu, a minha irmã mais nova ainda era adolescente. Estava no estádio com o meu irmão Alberto quando, enquanto exultava por um golo do San Lorenzo, o papá foi atingido por um enfarte. Socorreram-no e transportaram-no para casa".
Nos 20 dias seguintes, o pai acabaria por sofrer mais três ataques cardíacos, o último fatal, roubando-lhe a vida aos 53 anos. A mãe viveu mais 20 anos, mas também acabaria por ser o coração a tramá-la. Nessa sequência de episódios duros, o Papa acabaria por perder também os três irmãos do meio. "Ficámos apenas Maria Elena e eu. E uma exuberante ninhada de netos e bisnetos", escreveu, garantindo manter uma relação umbilical com a irmã mais nova.
UM PAPA QUE NÃO VÊ TV
Na biografia, há de tudo um pouco, dos dados mais oficiais, até às pequenas curiosidades sobre a vida no Vaticano. Por exemplo, Francisco conta que a última vez que ligou ou olhou para uma televisão foi em 1990, sendo que no livro explicou a sua decisão radical. "Estava em comunidade em Buenos Aires e estávamos a ver televisão quando no ecrã apareceu uma cena miserável, que me atingiu amargamente", disse, acrescentando ter feito um voto de que não mais olharia para um ecrã, o que deixou também impedido de fazer uma coisa que tanto gostava: ver os jogos do seu clube do coração.
É por isso que, apesar de adorar futebol, nunca foi capaz de responder a questões como o que pensa sobre o talento de um Messi, seu compatriota argentino, porque, apesar de já o ter conhecido, quando foi ao Vaticano, a verdade é que nunca o viu jogar futebol.
RETALHOS DA VIDA DE UM PAPA
Francisco descreve-se no livro como um animal de hábitos e extremamente agarrado ao seu habitat. Por exemplo, a última vez que se lembra de ter saído para umas férias foi "há 50 anos". "Não obstante isso, hoje faço as férias de verdade: mudo de ritmo. Se durante o ano desperto habitualmente antes das cinco, nas férias durmo um pouco mais, rezo ainda mais, leio coisas que me agradam, oiço música", diz o Papa, que tem na música clássica a sua favorita, e sonhava ser médico antes de ter decidido mudar o seu destino para se dedicar a uma vida religiosa, o que inicialmente desagradou à própria mãe.
A RECUSA DA RESIDÊNCIA OFICIAL
Quando chegou ao Vaticano, Francisco quebrou com os seus antecessores numa série de hábitos, tendo recusado a residência oficial, explicando porquê na sua biografia. "A casa é como um funil invertido. É espaçoso, mas a entrada é muito estreita. Entra-se a conta-gotas e eu, é esta a questão, não posso viver sem gente. Foi por isso que escolhi ficar na Casa de Santa Maria Maior, o edifício de hóspedes à esquerda da Basílica de São Pedro. O sítio onde depois viveria como Papa era um quarto para os hóspedes", escreveu.
TOLERÂNCIA ZERO PARA OS ABUSOS
Na biografia, Francisco volta a mostrar a sua posição firme em relação aos abusos na Igreja. "Com vergonha e arrependimento, a Igreja deve pedir perdão pelo terrível dano que aqueles religiosos causaram com os abusos sexuais de crianças", escreveu, recordando uma história que mostra que sempre agiu em conformidade com aquilo que pensa. "Quando era vigário em Flores, referiram-me um episódio relativo a um diácono, que tinha chegado do estrangeiro para fazer o sacerdócio. Aquele jovem tentara aproveitar-se de um rapaz paraplégico. Não aconteceu nada porque o rapaz, embora paraplégico, não era de modo algum submisso: reagiu com energia e deu ao diácono aquilo que merecia. E eu intervim de imediato, chamei o diácono e disse: 'vais-te embora imediatamente'. E informei o bispo do seu país do ocorrido."
Noutra passagem, é novamente claro para dizer o que pensa em relação aos abusos sexuais: "Crimes como estes não podem ser prescritos. Os abusadores são responsáveis, mas um Bispo que sabe e não faz nada também o é. Encobrir é acrescentar vergonha à vergonha."
UMA VISÃO MAIS ABERTA DO MUNDO
No fundo, Francisco mostra, na sua biografia, como não cede ao mofo do que é instituído e pensa pela sua própria cabeça, adaptando-se às mudanças do mundo, respeitando o amor entre todos, seja entre casais do mesmo sexo ou heterossexuais, mostrando como compreende as decisões difíceis da vida, como o divórcio, e rejeitando uma postura mais conservadora e um regresso ao tradicionalismo.
"As promessas que se baseiam no medo, acima de tudo, o medo do outro são a censura habitual dos populismos e o início das ditaduras e das guerras. Pois para o outro, o outro és tu", escreveu, acrescentando que na sua igreja há espaço para todos. "Abençoam-se as pessoas, não as relações", porque "na Igreja, são todos convidados, mesmo as pessoas divorciadas, mesmo as pessoas homossexuais, mesmo as pessoas transexuais".
A "primeira vez que um grupo de transexuais veio ao Vaticano, saíram a chorar, comovidas porque lhes tinha dado a mão, um beijo… Com se tivesse feito algo de excecional para elas. Mas são filhas de Deus! Podem receber o batismo nas mesmas condições dos outros fiéis e nas mesmas condições dos outros, podem ser aceites na função de padrinho ou madrinha, bem como ser testemunhas de um casamento", disse, com naturalidade para concluir que ainda muito há a ser feito para que vivamos em igualdade.
"São mais de 60 os países no mundo que criminalizam homossexuais e transexuais, uma dezena até com a pena de morte, que por vezes é efetivamente aplicada", mas "a homossexualidade não é um crime, é um facto humano e a Igreja e os cristãos não podem, por isso, permanecer indolentes diante desta injustiça criminosa".
Por fim, Francisco alerta ainda para a facilidade com que se condena determinado tipo de ações e se ignora outras, como se fossem naturais, numa escala de prioridades errada e perigosa.
"Os pecados sexuais são aqueles que a alguns causam mais rebuliço, mas não são, de facto, os mais graves", ao contrário de outros como "a soberba, o ódio, a mentira, a fraude ou a prepotência".
"É estranho que ninguém se preocupe com a bênção de um empresário que explora as pessoas, e esse é um pecado gravíssimo, ou com quem polui a casa comum, enquanto se escandaliza quando o Papa abençoa uma mulher divorciada ou um homossexual", conclui num livro que mostra que Francisco, aos 88 anos, tem uma cabeça muito mais aberta até do que as novas gerações e pretende ser um pontapé de saída para uma Igreja que seja de todos e não abra portas apenas a uma maioria.