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As memórias de Rui Veloso "Quando eu for com o 'caraças', olha... deitem-nas fora se quiserem!"

As memórias dos anos 80, o fim da parceria com Carlos Tê ("Não há possibilidade de reatarmos", garante), a visão sobre o mercado atual e aquilo que se vai fazendo ("a música anda sempre subalterna às palavras"), a relação entre as editoras ("querem comer-nos vivos", desabafa) e as plataformas de streaming ("são gangs instituidos", acusa). Tem a palavra o 'pai do rock português', sem filtros e sem papas na língua.
Miguel Azevedo
Miguel Azevedo
28 de agosto de 2025 às 21:08
Rui Veloso
Rui Veloso

Nota: Esta entrevista foi publicada originalmente na FLASH! Weekend a 22 de outubro de 2022

Ao final destes anos todos a tocar as mesmas canções, ainda se consegue surpreender com elas?

Sim e de que maneira!! É engraçado porque há canções que julgamos que são difíceis de passar para este formato mais acústico e que achamos que não vão dar, mas depois resultam em coisas muito engraçadas. 

 

Como por exemplo?

Como o 'Beirã'. Eu julgava que essa canção não vivia sem aquela batida, "tum tum tum' [exemplifica], mas um dia experimentámos, começámos a tocar e agora a malta adora aquilo.    

E nestes espetáculos há espaço para o improviso?

Há muito. Este formato tem muito de improviso. Nunca é igual. É impossível não haver improviso e o mais engraçado é que nós próprios nunca sabemos quando é que isso vai acontecer. 

Esta nova digressão acontece numa altura em que passam 40 anos sobre o lançamento do 'Fora de Moda' (1982), o segundo disco do Rui Veloso. Como olha para estas datas redondas?

Não ligo muito, mas a editora podia ter feito uma reedição ou uma caixinha até para animar o mercado. 

O 'Fora de Moda' seguiu-se ao icónico 'Ar de Rock' (1981), o disco que, para muitos, deu início ao 'boom' do rock português. Foi pressionado naquela altura para fazer um segundo álbum depois do sucesso do primeiro?

As editoras querem sempre fazer pressão para terem mais discos, mesmo que não seja lógico fazê-los. Mas o que houve, na verdade, foi pressão para fazer um single depois do 'Ar de Rock' ainda antes do segundo álbum. No caso, esse single foi 'Um Café e Um Bagaço'. No entanto, só mais tarde é que eu vim a perceber o porquê daquela pressão. Foi uma forma da editora se proteger a ela própria. 

Como assim?

É que o meu contrato dizia que se, no prazo de um ano, eu não fizesse mais um disco, eu próprio poderia rescindir o contrato. Como o acordo não especificava, no entanto, se o disco tinha de ser um LP ou single, lançámos aquela música. E lá fui eu para Madrid gravar 'Um Café e Um Bagaço' que até foi uma coisa que não me apeteceu nada porque eu andava por cá a ganhar algum dinheiro com os concertos. Na altura, eu queria era ganhar o meu, porque andava teso. 

 

E como é que era o Rui Veloso em 1982, na ressaca do 'Ar de Rock'. Era um tipo deslumbrado com o sucesso repentino que tinha tido ou não?

Qual quê! Eu ainda andava a apanhar bonés. As pessoas podem não acreditar, mas eu andava sem dinheiro para nada. Vivia de adiantamentos. Dei uma entrada para um apartamento, mas foi depois o meu pai que me ajudou.

 

Mas ganhava-se mal nos concertos naquela altura?

Sim. E para além disso estragava-se o corpinho todo. As condições eram más. Ninguém sabia fazer som, os PA's [sistema de som] eram maus e os palcos eram miseráveis. As coisas melhoraram muito, embora seja verdade que, quarenta anos depois, ainda se vão encontrando coisas dessas da idade da pedra, coisas mesmo medievais.
Pegando nessa ideia de que tudo mudou, ainda se justifica gravar discos numa altura em que o seu consumo é quase residual?

Gravar na minha idade, acho que não. É caro e as editoras querem é comer-te vivo. As coisas pioraram nesse sentido e ainda mais com as plataformas como o Spotify que são gangs instituídos. Todos nós, artistas, nem sabemos os acordos que são feitos com as editoras. Claramente o que sabemos é que as decisões não foram tomadas a nosso favor. Eu acredito muito nos independentes e acredito que o que conta são os concertos. São o grande ganha pão dos artistas.  

 

Sentes saudades daquele tempo em que se vendiam discos?

Eu acho que havia mais justiça. Hoje, estas novas empresas são altamente predadoras porque exploram os artistas ainda mais do que eles já foram explorados no passado. Nem sei como classificá-las. Houve muita gente a protestar como o Prince ou o George Michael, por exemplo, e houve alguns artistas recentemente que até tiraram as suas músicas do Spotify. Olha! eu fui um dos que acabei com isso!

Depois do fim da parceria com o Carlos Tê [letrista], o Rui Veloso continua sem encontrar a pessoa certa para escrever para si. Já desistiu de procurar ou ainda tem esperança de voltar a gravar originais?

Eu neste momento estou mais entusiasmado em revisitar coisas minhas que são do caraças!! Olha, eu gostava muito de tocar músicas minhas tal como pensei em gravá-las. 

E é isso que o Rui anda a fazer agora?

Também. Com a minha banda estamos a tocar coisas agora que estão melhores do que quando as gravei da primeira vez. E depois, a idade também é outra, as guitarras são outras e a qualidade faz-se sentir de outra forma. 

 

Escreve-se mal atualmente em Portugal?

Em termos de escrita, e tirando algumas coisas do hip-hop em que se fala efetivamente dos problemas do quotidiano, as letras, hoje em dia, são muito pueris, às vezes são quase de pré-primária. E não sou eu, com 65 anos, que cantei coisas sérias do Tê, que vou estar a cantar qualquer coisa, coisas que não fazem sentido para a minha idade. Para isso prefiro não gravar e continuar a cantar as minhas 'cenas' porque ninguém o faz como eu. Quando eu fôr com o 'caraças', olha deitem-nas fora de quiserem! 

 

Olhando para o panorama de autores em Portugal, quem é que ainda considerava que pudesse escrever para si?

Há algum pessoal que escreve coisas boas e com sentido, mas são muito na onda dos cantautores e portanto escrevem para si próprios. Não iam andar a escrever coisas para mim. Mas é engraçado ver como neste País a música anda sempre subalterna às palavras. Tem muito a ver com a cena intelectual. Mas não, não estou a ver alguém que pudesse escrever para mim. O Tê escrevia com humor, ironia e inteligência, era tudo ao mesmo tempo.

 

E nunca mais será possível reatar essa parceria?

Não, não há hipótese nenhuma. Isto foi como um casamento, chegou um dia que acabou. Foi pena porque era uma parceria única, mas o Tê quis seguir a vida dele, provavelmente livrar-se desta sombra tutelar do Rui Veloso e fazer as coisas dele. Tenho pena é que ele não tenha gravado um disco a cantar e feito uma digressão. Ou seja, o Tê escrevia, mas não sabia o que era, na pele, andar na estrada e passar por tudo aquilo que nós passámos. Andámos a desbravar caminho, a fazer milhares de quilómetros, a ficar em pensões rascas, a tocar em palcos rascas, com PA's muito maus e sem dinheiro. 
O Rui é daqueles que deve ter inaugurado as auto-estradas todas!

Tudo. Até fui eu que abri o Rock Rendez Vous. O primeiro concerto foi comigo. Há muita gente que passa por cima disso, mas fui eu que abri o Rock Rendez Vous. 

 

Recorda-se dessa data?

Eu não. Sei lá! Como diz o meu amigo brasileiro Nelson Mota "a minha memória fumei-a toda" (risos). Não me lembro de nada, mas acho que estava lá a minha mulher, grávida da Joana. Foi há quarenta anos. Acho que tenho para aí uma foto da Zé ao balcão, ao pé do palco, gravidissíma. Era uma altura em que ainda não havia telemóveis e era tudo muito pobrezinho. 

Outros tempos!

Era tudo muito pouco glamouroso. Quando fiz a primeira parte dos Police, em 1980, e cheguei ao palco é que percebi. Fizemos um som de palco que não voltei a encontrar nos dez anos que se seguiram. Quase não conseguíamos tocar com aquele som, porque era bom demais. Éramos de uma pequenez enorme, mas em termos de mentalidade há quem dizer que não evoluímos muito.     

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