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Sim, Chef! - episódio 7, Temporada 3, by Bacalhau da Noruega

Um santuário de bacalhau em pleno Bairro Alto

No bairro mais agitado de Lisboa - aquele que o dono deste restaurante, nascido e criado ali, diz que nunca dorme - existe há 17 anos uma meca do bacalhau e chama-se As Salgadeiras. Quando os turistas ainda só achavam que "bacalau", como lhe chamam, era um peixe malcheiroso e cheio de espinhas, Tina, a chef e mulher de José, já usava postas asa branca e tentava ensiná-los a comer. Ah, e a Trilogia de Bacalhau, hoje disseminada pela capital, foi ela quem a serviu primeiro.
João Bénard Garcia
João Bénard Garcia
30 de dezembro de 2021 às 21:59
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A fachada singela, caiada de branco, com letras discretas embutidas na parede, numa rua secundária do Bairro Alto, em Lisboa, não denuncia as surpresas, nem deixa adivinhar a explosão de sabores e variedade que a ementa deste espaço castiço tem para oferecer.

O restaurante As Salgadeiras herdou o nome da rua do Bairro Alto onde José António Antunes, um filho do bairro, o decidiu instalar em 2004. Talvez por isso, quando o ouvimos falar apaixonadamente do local vibrante onde nasceu, tenhamos que lhe perguntar se o seu restaurante só podia ser ali. Ele sorri e confirma que sim.

A cozinha é organizada e prática. Nela trabalham Tina, a 'chef', sócia e mulher de José António, a ajudante Joana, uma verdadeira mulher do Norte que Tina revela ser "exímia nos refogados, nos caldos, na comida de conforto", e o aprendiz Shahid, que veio do Bangladesh há pouco tempo e aqui aprendeu que existe um peixe chamado bacalhau, que os portugueses adoram (e que ele também), apesar de ainda lhe chamar 'bacalau'. Com tempo aprenderá a dizer corretamennte. Os clientes perdoam-lhe, atendendo que o confeciona na perfeição, e sem espinhas.

"ESCOLA" DE BACALHAU

E esse é um dos dramas que José António detetou nos hábitos dos clientes, em especial nos americanos, que diz tratarem o peixe com espinhas "a tiro", porque odeiam tirá-las.

"Começámos a divulgar os pratos de bacalhau. De início tivemos alguns dissabores, nomeadamente de estrangeiros, pela falta de conhecimento que tinham do que era o peixe. Para nós o bacalhau não era novidade, mas para os estrangeiros era. Tem um cheiro característico, tem uma textura diferente de qualquer outro peixe. Tivemos que começar a ensinar as pessoas o que era o bacalhau e como se comia", recorda.

O dono do restaurante As Salgadeiras ri-se hoje com a curiosidade dos turistas em relação ao bacalhau, um produto que vai ancestralmente à mesa de todos os portugueses, nem que seja só na noite de Consoada, ou no dia seguinte em modo de restos transformados em Roupa Velha, mas é um hábito lusitano.

"Ao princípio foi interessante dar a conhecer o produto, os pratos e como se come nas suas diferentes maneiras. Reza a história que haverá 365 maneiras diferentes de confecionar o bacalhau, uma para cada dia", acrescenta José António.

SÓ ASA BRANCA, MAIS NADA

Na cozinha só há tempo para nos mostrar uma, será à Pescador, e Tina faz questão de que seja o jovem aprendiz Shahid a cozinhá-lo, como forma de lhe estimular o gosto pela cozinha e para a família lá longe, no Bangladesh, o veja na internet e confirme que se está a desenrascar bem em Portugal.  

Perguntamos-lhes se a posta de bacalhau que confecionam é especial ou se qualquer posta de bacalhau serve. Tina esclarece que nem pensar e explica tudo. "Usamos posta asa branca extra longa. Só trabalhamos com este porque o outro bacalhau para fazer isto na grelha nota-se logo", diz, justificando a escolha. "Trabalho há 16 anos com asa branca. Trabalhei na Noruega. Se quiser fazer 'glamour' no prato é com este bacalhau. Vem demolhado. Só temos que o por em água fria para tirar o gelo. Não fazemos mais nada".

"A comida portuguesa é ótima e toda a gente adora"

Fazem, claro: Depois de frito, é acamado no prato. Shahid tira-lhe as espinhas e depois emprata com os mexilhões, os lagostins, o molho coado ao estilo bolhão pato, as batatas a murro e o pão frito no final.

Chama-se Bacalhau à Pescador e fica uma pequena obra de arte, adaptada ao cliente moderno, que quer comer mais do que só uma posta cozida com batatas numa travessa, como era antigamente servido o bacalhau.

"Fazemos os pratos bonitos, temos a preocupação. Temos o prato da casa que é grelhado, vai para a mesa. É um lombo de bacalhau grelhado que vai só às lascas, não tem uma espinha. Isso marca a diferença", ressalta José António, destacando algo que considera ser uma verdade: "A comida portuguesa é ótima e toda a gente adora a nossa comida. Mas ela sempre foi ótima. Antigamente apresentávamo-la de uma maneira diferente. E os olhos são os primeiros a comer".

Quem também tem olho (e mão) para a confeção é a equipa da cozinha, de onde saem iguarias de conduto e também de doçaria, ou não tivesse a alentejana Tina aprendido as receitas da avó e da mãe, estando aos 65 anos disposta a passá-las a quem tiver amor pelos tachos e panelas e as quiser aprender.

"Tenho netos e para eles isto é uma prisão e não querem. Às vezes o cliente sentado à mesa não percebe o stresse. Os clientes vêm aqui, perguntam-me receitas e eu dou. A minha cozinha aberta, não há cá segredos. Ensino as receita das sericaias, do leite-creme, dos doces conventuais e dos bacalhaus", jura.

ESCOLHAS DIFÍCEIS

O restaurante As Salgadeiras especializou-se em servir bacalhau, e em ensinar ao turista o gosto pelo fiel amigo bem tratado no prato, mas nem só de peixe pescado nos mares do Norte da Europa e da Costa Nova vive a ementa que Tina e a sua equipa na cozinha, em negociações com o sócio José António, definiram.

Nas mesas também rodam Polvo à Marinheiro, que rivaliza com o bacalhau nas preferências da freguesia, mas também a curiosa apresentação da Sopa de peixe com massa folhada cozida no forno ou a outrora novidade da casa, que nasceu aqui em 2004 e hoje meia Lisboa copia: a Trilogia de Bacalhau, um repasto para duas pessoas em que ninguém fica com fome.

A decoração rústica desta catedral da gastronomia, num espaço que já foi uma padaria e teve peripécias na fase de renovação cujas histórias merecem ser escutadas da boca do proprietário, ajuda a fazer que, quem volta a As Salgadeiras se queira aventurar num Tártaro de Polvo, numas Costeletas de Borreguinho Grelhadas com Molho de Menta ou numas Migas de Espargos Bravos com Lombinhos de Porco (ou não fosse a chef alentejana…) ou ainda de volta ao mar num Cherne Grelhado com Sautê de Gambas.

Bem, vamos ficar por aqui, em termos de conduto, para não deixarmos ninguém com água na boca, mas também seria injusto esquecermo-nos da doçaria da chef Tina. A abrir o cardápio pode-se escolher entre um Pudim Abade de Priscos ou um Crepe de Chocolate com Gelado de Nata ou uma Sericaia feita a partir do receituário tradicional alentejano.

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