
Em poucas horas após o acidente fatal que roubou a vida a Diogo Jota e André Silva, milhares de adeptos começaram a peregrinação até Anfield, deixavam flores, camisolas, cachecóis, escreviam mensagens sentidas, choravam, abanavam em cabeça em sinal de negação. E ao fim da primeira semana, o estádio do Liverpool já se tinha transformado num enorme Santuário em homenagem a Diogo Jota. As lágrimas dos adeptos, a onda de comoção, de união em torno do português surpreenderam muitos, mas dificilmente aqueles que conhecem a história de uma cidade e de um clube com uma identidade muito própria e que tem a palavra tragédia escrita no seu ADN.
Haverá certamente muitos momentos que marcaram a história do Liverpool, mas dificilmente algum será tão devastador como o que aconteceu no Estádio Hillsborough, em Sheffield, onde, em 1989, o clube disputava a meia-final da Taça de Inglaterra com o Nottingham Forest. Com milhares a aguardarem fora do estádio pela entrada, a polícia decidiu abrir um dos portões de saída, o que permitiu a entrada de um grande fluxo de adeptos para um setor que já estava sobrelotado, e que se encontrava cercado por grades. O resultado foi um esmagamento em massa que causou a morte no total a 97 pessoas, e provocou mais de 700 feridos, num pânico generalizado nunca esquecido por quem presenciou o horror.
O desastre provocaria um antes e um depois na vida do clube, por uma série de motivos. Se os habitantes de Liverpool sempre se sentiram um pouco à margem de Inglaterra - são conhecidos como os 'scousers', com um dialeto próprio dentro do britânico e nunca se reviram nas políticas mais conservadoras do Governo - esse episódio isolou-os ainda mais porque, além das perdas humanas que choravam, sentiram que o governo britânico os abandonou.
Os adeptos foram inicialmente acusados de serem os responsáveis pela tragédia e a capa do 'The Sun' que dava conta que os sócios haviam saqueado os mortos - que acabaria por ser desmentida, com um pedido de desculpas na capa - causou uma onda de revolta generalizada numa altura em que os fãs choravam a partida de quase uma centena de pessoas. O boicote ao tablóide britânico passou a ser total e com efeitos imediatos e ainda hoje será muito difícil encontrar este jornal à venda em qualquer banca em Liverpool, porque pura e simplesmente não chega lá.
Para os familiares de quem perdeu a vida em Hillsborough , a Justiça tardou a chegar. As investigações iniciais ao acidente responsabilizavam os adeptos pela tragédia, pelo que um grupo de cidadão de Liverpool desenvolveria, ao longo dos anos seguintes, o seu próprio dossier que levaria a que, em 2012, o primeiro-ministro britânico David Cameron pedisse publicamente desculpa às vítimas de Hillsborough e assumisse as falhas de segurança que levaram a uma das maiores tragédias em estádios de futebol.
Hillsborough transformou-se, por isso, num novo estandarte do Liverpool - que quatro anos antes já tinha sentido a sabor da tragédia em Heysel, na Bélgica, onde morreram 39 pessoas, quando, durante os confrontos entre adeptos do Liverpool e Juventus, um muro do estádio desabou.
Tragédias nunca esquecidas, que se tornaram numa lenda e que antevê que a promessa feita a Diogo Jota é para manter: este continuará vivo na memória de uma cidade portuária, antiga vila de pescadores, que tem uma aura muito própria especial.
BEATLES, MÚSICA E CULTURA
Conhecer Liverpool é indissociável de Anfield. São duas metades da mesma laranja. A cidade respira futebol e mesmo para quem não aprecia o fenómeno, é impossível que não se arrepie perante um estádio repleto, de cachecóis esticados, a cantar o hino do clube 'Wou'll Never Walk Alone'.
E, naturalmente, não é só no estádio. O futebol está por todo o lado: nas discussões mais acaloradas nos pubs, numa cidade que por vezes pode ser demasiado pequena para albergar dois clubes rivais (Liverpool e Everton), nos murais erguidos àqueles que os adeptos consideram os seus heróis, feitos por artistas da cidade - e que agora ganhou mais um, em honra a Diogo Jota, numa das laterais do pub Halfway House, o vermelho e branco confunde-se com os tons da própria cidade erguida à beira do rio Mersey, com um pássaro como símbolo, e que tem tanto de explosiva como de delicada.
Se o futebol é vivido a mil, com efervescência e intensidade, por outro lado, Liverpool respira cultura, de uma forma quase romântica. Na rua, está-se sempre a ouvir algum artista replicar um êxito dos Beatles, filhos da terra, com várias músicas a fazerem referência a este universo, como 'Pennylane'. Visitar a cidade é sair de lá a cantar os temas da mítica banda, ouvi-los nos pubs mínimos, onde há sempre espaço para mais um e para dois dedos de conversa, para quem consegue perceber o dialeto cerrado. Liverpool é um santuário aos 'The Fab Four' e tudo na cidade nos leva às músicas da banda, que começou a tocar no Cavern Club, que hoje é um dos muitos pontos de peregrinação para quem quer sentir os Beatles na cidade.
São, sem dúvida, os mais mediáticos, mas não os únicos a nascer numa cidade que é um palco natural para a cultura. É a única em Inglaterra a ter uma bienal de arte e em 2003 recebeu o título de Capital Europeia da Cultura, num legado que faz sorrir os habitantes de Liverpool, que se alimentam da própria identidade, das raízes muitas vezes mais irlandesas do que britânicas, orgulhosamente scousers. Disruptivos, explosivos, celebraram quando Margaret Tatcher - a polémica primeira ministra britânica - morreu, uma vez que sempre se sentiram marginalizados pela política do governo, que teve impacto significativo na vida dos habitantes da cidade portuária.
Muitas vezes incompreendidos, à parte da bandeira inglesa, orgulham-se da sua, dizem que na cidade há um sentimento de pertença, de partilha, que faz com que facilmente se estenda a mão para acolher o próximo, o que nos leva de volta a onde começámos: às tragédias.
Apesar das rivalidades históricas com os clubes de Manchester, da crispação com o Everton, Hillsborough mostraria que nada mais importa do que a vida, quando os rivais da mesma cidade se uniram para chorar a partida das vítimas do desastre, famílias inteiras destruídas pela desgraça. Da mesma forma, Diogo Jota mostrou que esse fosso de guerra não existe quando algo maior acontece. No seu regresso aos palcos, os Oasis - adeptos ferrenhos do City - dedicaram-lhe o seu famoso 'Live Forever', em algo de premonitório, porque Jota já se transformou numa lenda, num herói de Liverpool, uma cidade que o acolheu de braços abertos e se despede dele de coração apertado, prometendo que a família jamais caminhará sozinha.