
[a contagem que interessa]
Deitaste-te ao meu lado e pediste-me desculpa. Por te querer foder agora mesmo, explicaste. Depois despiste-me e fomos felizes outra vez.
A felicidade é uma puta fácil, nunca uma filha da puta traiçoeira, expuseste, cigarro na mão, enquanto passeavas a mão pelo meu peito. Não é, perguntaste: insististe. Tenho um lado negro que tu trazes e apagas: és criador e exterminador do que me domina, explanei, sem saber ao certo o que quis dizer. Respiraste fundo. Olhaste para o céu, escondido atrás da noite. Atiraste o fumo, lento, misterioso, para o ar. Poderia escrever uma tese inteira sobre a importância de pensar sobre o que nos impede de pensar, começaste por expor. Mas prefiro um orgasmo, concluíste. Eu aceitei a tua preferência, como sempre, até porque era também a minha. Por cada reflexão profunda deveria haver pelo menos dois ou três orgasmos profundos, pensei, e iniciei a contagem.
Tenho um lado negro que tu trazes e apagas: és criador e exterminador do que me domina, explanei, sem saber ao certo o que quis dizer.
Respiraste fundo.
Olhaste para o céu, escondido atrás da noite. Atiraste o fumo, lento, misterioso, para o ar.
Poderia escrever uma tese inteira sobre a importância de pensar sobre o que nos impede de pensar, começaste por expor. Mas prefiro um orgasmo, concluíste.
Eu aceitei a tua preferência, como sempre, até porque era também a minha.
[a lembrança que interessa]
Ontem vi o nosso álbum de casamento e chorei. Éramos tão felizes, caralho. Tínhamos os mesmos sonhos que temos hoje e todo o tempo do mundo para os cumprir. Envelhecer é perceber que todo o tempo do mundo acaba rápido. Fizemos o que tínhamos para fazer. A casa, os filhos, a carreira. Falhámos quando não conseguimos acertar, magoámos quando não conseguimos evitar. As pessoas falham e magoam, e depois sabem que falham e magoam e isso magoa. Tivemos todas as oportunidades individuais e aceitamos as que pudemos aceitar juntos. Eu podia ser o chefe mais infeliz da cidade, tu podias ser a actriz de sucesso mais triste da história do teatro. Preferimos a segurança de tu e eu no meio de nós, e talvez por vezes a segurança seja a coragem possível. Há que erguer todos os actos de amor, mesmo os cobardes, a heroísmo. Perdemos muitas ocasiões para o êxtase volátil, para a tentação sem consequências. Poderíamos hoje ter mais orgasmos no currículo, mais gemidos para recordar. Temos apenas um ao outro, todos os dias, e às vezes um ao outro também traz um orgasmo que fica. Não quisemos mais do que a nossa certeza, mais do que uma permanência parada. Ontem vi o nosso álbum de casamento e chorei, já te tinha dito. Faria tudo outra vez, se queres que te diga, e já disse.
[a ameaça que interessa]
Choro para te magoar, perdoa-me a infantilidade. Não quero que passes ileso pelo sofrimento que me causas; mas o pior é que as minhas lágrimas te fazem sofrer e então choro de verdade por te ver ferido. Sou tão egoísta quando te amo, e nunca paro de te amar. Se não fores meu quero bem é que sejas infeliz, deixa-me que te diga, que eu não sou de palavras vãs ou de hipocrisias ocas, como tantos que ouço por aí. Dizem que quando se ama se quer o bem dessa pessoa, mesmo que longe de nós. O caralho é que te desejo feliz com outra pessoa. Ai de ti se fores feliz com outra pessoa. Vais ficar comigo até à morte, nem que tenha de te matar e de ir para a choldra por isso. Descansa: estava a brincar. Se te matasse iria fazê-lo tão bem feito que nunca na vida iria para a choldra. Pensa bem nisso.
Pão: s.m.: Aquilo que o amor também consegue multiplicar. Uma refeição partilhada é uma refeição multiplicada.