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Luísa Jeremias
Luísa Jeremias No meu Sofá

Notícia

Quando o samba virou fado

Dois acidentes no Sambódromo, arrastões na praia, uma cidade a saque que em vez de se levantar na pós-olimpíada, chora as suas mágoas contra a corrupção e o estado das coisas. Será que o fado tirou o lugar do samba?
02 de março de 2017 às 15:16

Juro que não consigo compreender todo o entusiasmo de muito boa gente em torno de viagens para o Rio de Janeiro. Se alguém ama o Rio sou eu. Minha segunda terra. Durante muito tempo quase primeira. Até me desencantar com o ela se tornou.

Comecei a ir para lá no começo década de 90, sempre a trabalho. Eram os anos em que ainda recebia longos sermões sobre as regras da cidade: não andar com muito dinheiro (por causa dos assaltos) mas também não andar sem dinheiro nenhum (senão os ladrões poderiam ficar aborrecidos e isso custar-nos a vida), não ir passear à noite para a praia (sacrilégio!), não andar sozinha, escolher os táxis que se apanhavam, sem sequer pensar em apanhar um ônibus pois o risco de assalto era de 90 por cento… Ouvia sempre os conselhos, seguia muito poucos (como é normal quando nos encantamos por um local e achamos tudo irá correr bem pois estamos protegidos pelos deuses) mas a verdade é que o Rio de Janeiro era uma cidade tão maravilhosa como complicada na abordagem. Sim, era violenta, sim, era pobre, sim precisava de obras, mas, sim, era encantadora.

Os tempos evoluíram, as ONGs locais multiplicaram-se, a Cidade de Deus virou moda, a quadra da escola de samba passou a ser um local frequentável por turistas sem risco de assalto e violação em grupo, a polícia subiu os morros e criou unidades pacificadoras, obrigando os traficantes a descerem até à cidade e transformando algumas zonas em "terra de ninguém", a especulação imobiliária cresceu disparatadamente, um T1 em Ipanema sem vista mar passou a ser mais caro do que uma moradia em Beverly Hills, os bailes funk viraram moda entre a classe mais abastada, a Copa do mundo chegou e trouxe com ela ainda mais visitantes, o turismo sexual cresceu ainda mais, a olimpíada começou a mudar o rosto da cidade, a corrupção tomou o poder, foi desmascarada e, ultimamente, castigada. Os novos bandidos de colarinho foram presos, mas a bandidagem, agora com mais fome e depois de ter corrompido a polícia que a expulsou do morro, continua à solta. E a especulação imobiliária não caiu. Mas, depois do sonho com o ‘el dorado’, a dura realidade voltou ao Rio de Janeiro, com a cidade mergulhada em medo, corrupção, e falta de luz no fundo d túnel, vingando-se no chope e no futebol para esquecer a "sujeira" nas ruas e nos corredores da política. O Rio voltou aos anos 90, essa é a realidade, depois de ter sonhado transformar-se numa Miami a sério, com uma geografia única no mundo, um encanto e uma ginga ímpar. Não há tropa de elite que lhe baste, não há samba que faça rir para não chorar, e até o Carnaval este ano teve sabor amargo, com dois acidentes em pleno sambódromo (quando se pensava que nada mais podia acontecer, aconteceu).

Não me mal-entendam os cariocas – que ficam "putos da vida" quando alguém fala mal da sua cidade. Eu sinto-me com autoridade para falar, pois eu também sou carioca de alma e coração. Amo a cidade. Conheço-a tão bem como a minha terra, Lisboa, se calhar até melhor. Por isso posso falar! Chega! Vamos parar. Vamos parar de tantas lamúrias, tanta certejinha no boteco para esquecer, tanta demagogia sobre a maldição da classe política. Vamos parar com o fado, ok? Se calhar chegou o momento de tomar medidas em vez de "botar sentença" de braços cruzados. Afinal, os cariocas são filhos diretos dos portugueses, ao contrário dos paulistanos, que têm Itália no sangue, ou o sul que descente de alemães. Carioca "dá um jeitinho" para resolver, em vez de encontrar soluções reais e eficazes. Como nós. Mas em uma vantagem. Vive no novo mundo, onde tudo se resole mas rapidamente, onde há pouco a perder, onde é possível cair e levantar sem muita burocracia ou contingências. Os portugueses, coitados, continuam castrados pelo velho mundo, a Europa, cheia de regras, de problemas em vez de soluções.

Não percebo a euforia de muitos em rumarem ao Rio, mergulhado numa crise moral, social e económica como há décadas não se via. Eu, neste momento, só consigo sentir tristeza lá. Mas acredito que se vai ser dada a volta por cima, como sempre acontece. Menos fado, mais samba. Menos choro, mais arregaçar as mangas. E tudo vai dar certo. E amanhã vai ser outro dia. E vai voltar a dar prazer chegar ao aeroporto, aterrar na Cidade Maravilhosa, sentir aquele bafo quente e húmido e passear na praia às horas que nos apetecer e dar um mergulho nas águas (de preferência limpas) de Ipanema. Rápido, por favor! 

 

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