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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Feliz Natal, Sr. Interno

Gosto de me sentar ali a teu ladinho num tempo sem tempo, nunca vou com os minutos contados, tenho mais que fazer do que deixar que o mundo lá fora me corte o tempo que é para ti.
24 de dezembro de 2017 às 01:17
Hospital, São José, Lisboa
Hospital, São José, Lisboa

Até te conhecer, dizias que os teus dias eram todos iguais. Não sentias frio nem calor, só o sol que entrava pela janela e ia iluminando as colinas da cidade, enfeitando o casario irregular de múltiplos cambiantes, mas tu não queres ser mero espetador de mais um postal de Lisboa, a tua vida era outra antes de chegares à cama número 9. Agora o teu tempo mudou, é um tempo chato e indolente que se arrasta porque não te podes mexer, porque a cabeça te dói, porque a vida te pôs à prova sem razão nenhuma.

"Agora é assim e depois logo se vê", digo-te sempre que te visito. O meu carro já sabe o caminho para o parque de estacionamento ao lado da ladeira que subo com o coração a encher-se de alegria porque te vou ver. Chego e dou-te abraços tortos, depois sento-me do teu lado esquerdo e fico ali a dizer disparates e convencer-te a beber água ou chá. Quase nunca tens fome e nem sempre tens sede, a testa está sempre um bocadinho quente, eu vou pousando as minhas mãos, primeiro as palmas e depois as costas e os nós dos dedos para te refrescar.

Nem sempre consigo calar-me, conto-te histórias, episódios do passado e do presente, às vezes levo um vestido amarelo porque se fosse amarela era uma grande banana e tu ris-te de tudo, só me falta o nariz de palhaço, ou se calhar nem me falta nada porque só me sinto feliz quando me posso dedicar e agora quero dar-te alegria para que os teus dias não sejam sempre iguais, presos na teia infernal da mesma rotina, as mesmas caras, a mesma comida de hospital, no pequeno ecrã pendurados sempre os mesmos programas, um mundo confinado de lençóis azul-pálido e de luzes de teto que se acendem e se apagam à mesma hora, numa repetição catatónica que te mói a paciência e te mina o alento.

Trocamos músicas e fotografias, segredos e confidências, falamos de tudo e de nada e damos as mãos como quem faz uma roda no recreio do colégio. Inclino a cabeça para te olhar de frente e o que vejo são dois olhos enormes, rasgados e argutos como os de um gato, castanhos e cheios de pestanas que dominam a cara toda, luzes que se acendem de dentro e que nem imaginas a força que têm.

Gosto de me sentar ali a teu ladinho num tempo sem tempo, nunca vou com os minutos contados, tenho mais que fazer do que deixar que o mundo lá fora me corte o tempo que é para ti. Lá fora o sol vai perdendo a força, acendo as luzes do fundo do quarto para não te cansar os olhos e de vez em quando olhamos os dois para o paciente da cama do fundo que nunca fala, que passa os dias a dormir, que a guerra desfigurou e que a vida aplacou para sempre, e tu dizes com essa sabedoria toda que carregas no peito que há sempre vidas piores.

Ele não tem visitas nem alegria, está desligado de tudo o que foi, e eu falo-te muitas vezes nisso e peço-te que nunca te desligues de todos aqueles que te amam – e são tantos, querido Sr. Interno – porque é quando nos desligamos do mundo que ele nos vira as costas. Enquanto tivermos capacidade e vontade de o abraçar, há sempre alguém do outro lado para nos abraçar também.

Não sei quase nada da tua vida antes de te conhecer assim, em modo horizontal e de gorro na cabeça, mas sei que não era tão feliz como me sinto agora. É como se uma parte de mim andasse à procura de um caminho por cumprir. Agora já descobri um caminho possível, é só subir dois patamares das escadas de pedra, os azulejos nas paredes do antigo convento fazem-me companhia com as suas histórias silenciosas de cavaleiros, de reis e de conquistadores, depois viro à direita, depois à esquerda e vou até ao fundo do corredor onde os abraços são tortos, o riso é cristalino e o olhar nunca se descola.

Neste Natal tão diferente dos outros, quero dizer-te que foste o melhor presente que tive nos últimos anos e que em breve espero poder levar-te a ver o mar, à tua ou à minha praia, tanto faz, porque o futuro vive dentro de nós como uma terra prometida que já nos pertence.

Feliz Natal Sr. Interno. O mundo está à tua espera.

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