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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Infelizes para sempre

Dez anos depois está sentado na minha sala a beber chá. Pergunto-lhe como está a vida, a mulher, os dois filhos. Responde com um sorriso triste, "todos os dias penso numa maneira de me divorciar".
15 de dezembro de 2017 às 07:00
Santarém, localidade, largo do seminário
Santarém, localidade, largo do seminário

Sempre que o telefone toca e é um velho amigo, tu sabes que alguém neste mundo líquido e inconsequente tem saudades tuas e precisa de conversar. As velhas amizades são feitas de distância que nada tem a ver com ausência. Não importa se passaram três semanas ou vinte anos, os amigos de sempre são para sempre.

Com o Xavier é assim. Somo amigos desde o tempo em que dançávamos ao som de Phil Collins no Banana’s. Uma vez saímos da discoteca numa manhã fria de Dezembro com água pela cintura nas cheias de 1981, depois de nos divertimos com água pelos tornozelos até às 4 da manhã. Podíamos ter morrido todos electrocutados, mas na altura ninguém pensou nisso.

O Xavier era giríssimo e de uma simpatia e charme imbatíveis. Namoriscou várias amigas minhas, deixou-se ir em paixões arrebatadoras por duas ou três miúdas e acabou por casar já tarde com uma boa rapariga de olhar triste que vive em Santarém. Sempre senti que aquele casamento não tinha muita a ver com ele, mas à medida que os anos passam, vemos os nossos amigos a cruzar a vida de forma avulsa, por isso quando aparece um par, fazemos tudo para acreditar que aquela é a pessoa certa, não por nós, mas por eles.

A rapariga dos olhos tristes era de uma beleza austera, mesmo no dia da boda. Ele parecia muito feliz, bebeu e festejou o sonho até o raiar do dia. Dez anos depois está sentado na minha sala a beber chá. Pergunto-lhe como está a vida, a mulher, os dois filhos. Responde com um sorriso triste, "todos os dias penso numa maneira de me divorciar". Assim, sem anestesia, como quem espeta uma faca na perna. Vejo a minha chávena suspensa no ar, talvez esteja de boca aberta a olhar para ele, porque logo a seguir diz, "não te preocupes, estas coisas acontecem a muita gente. Tenho vários amigos que são infelizes em casa, parece que é uma das doenças do século, sei lá".

- E o que vais fazer?

- Não sei. Por agora nada. Vou aguentar. Se um dia rebentar, paciência, vou à minha vida.

E explica-me que tudo funciona menos o afecto. Que ela é excelente dona de casa e óptima mãe, que a vida corre sem sobressaltos, que a sogra está sempre lá enfiada com o pretexto de ajudar e que ainda é mais chata e triste do que a filha, e que ele suporta tudo apoiado num esquema mental de desligar de beber copos sempre que lhe apetece, mesmo que seja em casa, "não sabes os milagres que uma boa garrafa de tinto operam na vida de uma pessoa", conclui, em jeito de remate.

Não sei porque o álcool nunca me puxou, mas consigo imaginar a sensação de torpor suave no qual uma pessoa mergulha. Há demasiados escritores a escrever sobre o assunto, no fundo é como se já tivesse vivido isso. Quando ouvimos a mesma história podemos ser levados a acreditar que aconteceu connosco. Porém, a história que me está a contar, embora já a tenha ouvido contada por muitas outras pessoas, é uma daquelas que não consigo imaginar como minha. Não imagino uma casa sem afecto, um lar sem abraços nem alegria, para mim família é amor e carinho, alguns conflitos e muito riso, numa união que faz a força alimentada a amor. E digo-lhe isto mesmo, ao que o Xavier responde, se calhar é por isso que estás solteira, como se não houvesse outro caminho.

Despedimo-nos com um grande abraço. "Não te preocupes, isto um dia vai ao lugar", disse, como se soubesse o lugar certo para cada coisa da vida. Gostava de o ver feliz, mas a vida ensinou-me que nada adianta sofrer pela tristeza alheia se não temos meios para a dissipar. Ainda assim, todos os abraços ajudam. Digo-lhe que pode voltar sempre que quiser, os amigos servem para isto mesmo, chegas e dizes tudo e depois partes mais leve, mesmo que a tua vida seja ser infeliz para sempre ao lado de alguém que se esqueceu de te abraçar.

Fui à cozinha e fiz outro chá. Lá fora o vento fazia dançar as árvores e pingos grossos de chuva batiam furiosamente contra os vidros de toda a casa. Pensei no Xavier a caminha de casa, ao volante, debaixo da chuva, sem vontade de regressar a Santarém. Bebi o chá e fui dormir. Não consigo imaginar nada mais desolador do que ter um corpo na cama ao lado e não o abraçar. Antes a morte que tal sorte.

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