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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

Limpa-neves, procura-se

É sempre lindo ver uma mulher a derreter. É como uma montanha que se livra da neve para florescer na Primavera seguinte sempre mais verde.
14 de dezembro de 2018 às 08:00
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mulher, mulher só, montanha, neve, inverno, lago, bucólico Foto: D.R.

O BJ, como é conhecido o Baixo Gávea, é um cantinho do Rio de Janeiro perto da Praça Santos Dummond onde existem vários restaurantes e bares, entre os quais o Guimas, preferido de muitos portugueses, embora na Zona Sul o local de encontro mais mitificado pelos turistas tugas seja o Jobi. O Jobi é barulhento, cheira a fritos, está sempre a abarrotar e é muito não-sei-me-viste. A zona do BJ é mais carioca, frequentado sobretudo por nativos com alguns gringos misturados. Para os cariocas, um gringo é qualquer estrangeiro que não seja português.

Num prédio de esquina, subindo umas escadas estreitas, há forró às quartas-feiras com uma banda ao vivo. Lá dentro faz muito calor apesar das janelas abertas para varandins que lembram as imagens do Bataclan na novela da Gabriela Cravo e Canela. Não existem mulheres emplumadas nem senhores de fato com colete e relógio de corrente. Elas esvoaçam em vestidos leves e sandálias rasas e os homens fardam-se de t-shirt, calções e havianas, ou ténis. O forró é muito fácil de dançar e tem um estilo bastante agarrado. É prática corrente os pares dançarem sem se conhecerem. Foi assim que a minha amiga Morgana conheceu o Rodrigo, músico pernambucano de caracóis desarrumados, coração de leão e espírito indomável.

O Rodrigo não a convidou logo para dançar porque é vocalista de uma banda residente naquele forró. Antes de subir ao palco, meteu conversa com a loira enigmática que tem nome de feiticeira porque a mãe é dada ao oculto. A minha amiga é alta e entroncada, embora bastante feminina graças às suas feições de boneca russa diluídas em sangue árabe. O resultado é surpreendente. Morgana medita muito e namora pouco, não tem filhos nem pensa no assunto, gosta de sair à noite com as amigas e, de vez em quando, interessa-se por um homem. O resto do tempo mantém-se contemplativa perante a vida, ouvindo os enredos alheios com o coração aberto e o olhar acolhedor, sobre os quais tece sempre conselhos sábios e atentos. Não conheço muitas mulheres assim, com aquela calma, que não sei se natural ou treinada, pois é sabido que depois dos 40 nada é por acaso numa mulher, mas fruto de escolhas nem sempre felizes ou voluntárias. Depois dos 40 ficamos mais sábias. Às vezes mais cansadas e menos ingénuas, menos influenciáveis pelos ventos inesperados que nos trespassam o coração. Se a candura e a alegria de viver se sobrepuserem aos desgostos inerentes à vida real, estamos safas.

O Rodrigo tinha um ar tão desarrumado que eu nunca olharia para ele duas vezes. Quando subiu ao palco e começou a cantar, toda a gente levantou o pé do chão e começou a dançar. Parecia um maestro de dança, não sei se existem, mas foi assim que o imaginei. Morgana observava estática a magia espalhada pelo seu novo pretendente. Estávamos mais três amigas com ela. Perante aquela demonstração de talento, incentivámos a aventura.

Já lá vão quase seis meses e o Rodrigo despenteado continua feliz a cantar nos bares e a abraçar a sua feiticeira nos intervalos dos espetáculos. Vejo-o cantar-lhe melodias secretas ao ouvido que não partilha com o mundo, enquanto observo o olhar concentrado da minha amiga, encontrado num lugar que parece ser o vazio, e que no fundo é aquele canto mágico e tão raro onde a admiração se mistura com a paixão. É lindo assistir de camarote aos beijos sem pudor que trocam na rua, aos olhares lúbricos carregados de promessas que irão cumprir-se assim que apanharem um Uber para casa dela, um apartamento espaçoso em Ipanema que já aluguei por temporadas.  A feiticeira loira, seráfica, arrumada e suave enganchada com o música desalinhado, ruidoso, aceso de mãos, rápido nos gestos e na palavra.

Às vezes ela fica em casa e ele aparece-lhe já tarde, cheio de interesse pelo corpo dela. Diz que não quer uma relação séria, ela encolhe os ombros e responde que não faz mal, e a vida segue o seu rumo natural. "O que ele faz não é o que ele diz, mas os homens são mesmo assim", comentava ontem antes dele chegar ao Guimas, enquanto as miúdas bebiam cerveja menos eu. Quando ele chegou de olhos a brilhar a beijou sem pudor, a feiticeira começou a derreter discretamente. É sempre lindo ver uma mulher a derreter. É como uma montanha que se livra da neve para florescer na Primavera seguinte sempre mais verde.

Gostava de voltar a ser essa montanha. Quem sabe um dia conheça um limpa-neves em forma de pessoa que me resgate do estado glaciar e me faça nascer de novo margaridas e borboletas dentro do peito.

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